Filosofia

SEM FILOSOFIA NÃO SE FAZ CIÊNCIA

Sem filosofia não se faz história. Sem filosofia não se escrevem poemas de amor, nem se conhecem as estrelas. Sem filosofia não se fotografa um beija-flor. Sem filosofia não se descobrem propulsões alternativas para viagens interplanetárias. Sem filosofia não se explica o mundo. Sem filosofia não se vive a vida. Sem filosofia não se tem orgasmo. Sem filosofia não se conhece Deus.


MAS O QUE É FILOSOFIA?

Meu professor de Lógica na USP, Oswaldo Porchat, dizia, ironicamente, que a melhor definição de filosofia é esta: "Uma palavra de nove letras". Em português, eu completaria. Por falar em Porchat, no final desta página publico um artigo dele: A Filosofia e a Visão Comum do Mundo. Entretanto, vamos começar compreendendo o que os antigos gregos compreendiam por filosofia.

A palavra filosofia é composta das palavras gregas philia, que significa amor, e sophia, que significa sabedoria. Contudo, não é qualquer amor, e não é qualquer sabedoria.

Há mais de uma palavra grega que designa amor. Há, além do amor filia, o amor ágape, o amor storge, o amor eros.

Ágape é a palavra usada pelo grego moderno para denotar amor. “Eu te amo”, em grego, se diz s’agapo. Em grego antigo, contudo, ágape se refere, geralmente, a uma afeição, a uma preocupação. É o termo usado, no Novo Testamento, para designar a relação entre Jesus e João, o discípulo que Jesus amou. É ainda o termo com o qual Jesus pergunta três vezes a Pedro, em Jo 21,16: “Pedro, tu me amas?”, ao que Pedro responde três vezes usando não o termo ágape, mas o termo filia: “Senhor, sabes que eu te amo”.

Storge significa, em grego moderno, a afeição natural que se sente por pais ou por filhos. Raramente a palavra storge foi usada em textos antigos, e, quando foi, quase exclusivamente como descrição das relações intrafamiliares.

O amor eros, como é evidente, é aquele amor que hoje chamaríamos erótico. Eros é o amor apaixonado, o amor sensual. A palavra grega moderna erotas significa “amor romântico”. Platão refinou a definição de eros. Embora o amor eros seja, a princípio, sentido por uma pessoa, por meio da contemplação se torna uma apreciação da beleza dentro da pessoa amada, ou mesmo se torna a apreciação da beleza em si. Platão não considerava a atração física um componente necessário do amor eros, e daí advém o termo “amor platônico” quando se quer falar de um amor no qual o componente sensual não é importante. Os amantes e os filósofos são inspirados a buscar a verdade por meio do eros. O amor eros é o assunto do Banquete de Platão.Philia significa, em grego moderno, um amor virtuoso, o que é um conceito desenvolvido por Aristóteles. Inclui lealdade aos amigos, família e comunidade, e requer virtude, equalidade e familiaridade. Nos textos antigos, philia denotava o tipo de amor que existia entre os membros da família e entre os
amigos, um desejo ou apreciação de uma atividade, assim como o amor entre amantes.

Por seu lado, sophia também não é a única palavra grega que designa sabedoria ou conhecimento. Além dela, também episteme, technê e phronêsis designam idéias aproximadas.

Episteme e technê designam conhecimento, mas o conhecimento que designam são de espécies diferentes, ao menos a partir da acepção de Aristóteles.

Enquanto episteme é um conceito que designa “conhecimento teórico”, technê designa “conhecimento prático”, ou “arte”, ou “técnica”. Por exemplo: a física, a química, a matemática ou a biologia seriam exemplos de “conhecimento epistêmico”, enquanto a medicina, a engenharia, a ourivesaria e a olaria seriam exemplos de “conhecimento técnico”.

Sophia, por sua vez, designa, mais do que um “conhecimento teórico” ou “prático”, uma “sabedoria de vida”. Contudo, a sabedoria referida pelo termo sophia não é uma sabedoria prática, mas teórica. Sophia é a capacidade de dirigir a sabedoria intelectual virtuosamente – em contraste com phronésis, que é a sabedoria prática, a prudência, a aplicação do julgamento correto à conduta humana. Finalmente, podemos dizer a que espécie de amor e a que espécie de conhecimento a filosofia se refere, pelo menos quando tratamos da filosofia como era compreendida pelos gregos após Aristóteles.Filosofia é o amor virtuoso – o amor que se dedica aos amigos e à família, o amor que é o prazer e o desejo em praticar uma atividade – pela sabedoria teórica aplicada à vida do homem.

Em meio à imensa variedade de definições dadas por vários filósofos, por várias escolas, por várias correntes, pretendemos manter a que encontramos por meio da compreensão dos termos gregos que constituem a palavra philosophia.

Como se compreende a partir da definição da filosofia, ela é um desejo de sabedoria. Mas esse desejo não pode ser confundido com a sabedoria mesma.

Aliás, a filosofia é uma espécie de “sabedoria” que não é, de fato, uma sabedoria; uma espécie de “conhecimento” que não é, de fato, um conhecimento.

A filosofia não é uma sabedoria, não é um conhecimento, porque o caráter essencial da filosofia não se encerra no ato de conhecer ou de saber, mas no ato de interrogar. A filosofia não é um resultado, não é uma resposta: a filosofia é o próprio problema, é a própria questão.

Se a filosofia é um desejo de sabedoria, podemos dizer que, ao saciarmos o desejo, cessa a filosofia. O filósofo nunca é um sábio, o filósofo não é um cientista, não é um místico; do mesmo modo, o cientista, o místico e o sábio não são filósofos, não ao menos enquanto se mantêm na solidez do conhecimento consolidado.

Platão, no Banquete, faz Sócrates apresentar uma definição de amor que serve perfeitamente à espécie de relação amorosa que pretendemos compreender com o termo filosofia.

Em certa passagem do Banquete, o amor é apresentado como um desejo do ser amado – o amor é o desejo da posse do objeto, da pessoa, da ideia que se ama. Se o amor é o desejo da posse, então o amor é a falta daquilo que se ama, pois, quando se possui a coisa, não mais se a deseja. O amor o sentimento de vazio causado pela ausência, pela falta, do amado.

Se a filosofia é o amor pela sabedoria, então a filosofia não é sábia – pelo contrário: a filosofia tem falta de sabedoria. Ou melhor: a filosofia é o desejo de possuir a sabedoria que não se tem e que se reconhece não se ter. O filósofo, portanto, não é um sábio, senão um amante. O filósofo é aquele que reconhece não ser sábio, mas deseja saber. E o filósofo somente é filósofo enquanto mantém-se um amante, somente é filósofo enquanto reconhece que não sabe. No momento em que o filósofo diz: “Eu sei!”, deixa de sê-lo. Passa a ser cientista, passa a ser sábio, passa a ser místico – mas não é mais filósofo. O filósofo vive na pergunta, mas morre na resposta.

A filosofia não é sábia – mas, paradoxalmente, esta ausência voluntária da sabedoria reflete uma sabedoria diferente, aberta, irônica, ilimitada. A recusa voluntária da sabedoria é, em si mesma, também uma sabedoria, só que mais profunda. Mais profunda porque não se deixa aprisionar por aparências, por pré-conceitos, por idéias, mas tem coragem de duvidar de tudo, e até – ou principalmente – de si mesma. A sabedoria da filosofia é a sabedoria que duvida de si mesma.

É por isso que o Oráculo de Delfos declara que Sócrates é o mais sábio dos homens – e é o mais sábio justamente por não ser sábio, embora deseje sê-lo. Sócrates deseja ardentemente saber, conhecer, compreender; seu desejo, contudo, é tão intenso que determina sua impossibilidade de ser satisfeito. Os especialistas consultados por Sócrates na busca pela verdade estão satisfeitos com seus conhecimentos; mas Sócrates vê e faz ver que eles não compreendem o que dizem e ensinam – e, portanto, que Sócrates é mais sábio, pois pelo menos sabe que não é sábio, enquanto os sábios se enganam e enganam aos outros.

Se depreende daí que a filosofia é definida pelo desejo de algo que não possui – a sabedoria. Agora, finalmente, devemos retomar a “sabedoria” denotada pela palavra sophia. Como vimos, sophia é a sabedoria teórica aplicada à vida cotidiana. Novamente aí não há espaço para um saber livresco ou para um saber místico.

A filosofia não é um conjunto de “idéias puras” cujo propósito seria apenas fornecer um prazer contemplativo ou um discurso puramente teórico – embora não seja, de modo algum, uma prática sem fundamentação teórica – afinal, a filosofia não é uma phronesophia.

Ela é uma maneira de viver, mas não uma maneira desligada do discurso: na filosofia, a pratica é intimamente vinculada ao discurso, e o discurso filosófico necessariamente remete a uma prática.

Se for, finalmente, necessário oferecer uma definição para a filosofia, poderíamos dizer, seguindo uma inspiração aristotélica, que a filosofia é a busca teórica pela realização do desejo de pensar e agir bem – uma busca que, desde o princípio, se coloca como investigação a respeito do sentido da própria busca.

O que se coloca como problema, e que todas as correntes e teorias filosóficas tentarão solucionar, é: o que significa pensar e agir bem? Como podemos investigar sobre o melhor pensamento e a melhor ação para que possamos pensar melhor e agir melhor? É este o grande problema filosófico. E todo o sistema filosófico não é outra coisa senão a tentativa de conciliar o sentimento mais profundo, simples e indizível – sentimento que é a resposta do filósofo ao problema de como pensar e agir bem e ao problema do significado disso – em termos compreensíveis.

A filosofia não é uma sabedoria, não é uma erudição. A filosofia é um modo de viver. Por muito tempo evitamos o clichê “filosofia de vida”; contudo, desde que saibamos exatamente o que isso quer dizer, não mais temos medo de falar que, em certo sentido, toda filosofia é uma filosofia de vida.


Se não é uma filosofia de vida, é uma filosofia morta.



Fonte: http://oficinadefilosofia.wordpress.com/2006/11/06/o-que-e-a-filosofia-minha-resposta/



As Meditações sobre a Filosofia Primeira compõem a tentativa de Descartes de alcançar o conjunto de princípios fundamentais que se pode conhecer como verdadeiros sem qualquer possibilidade de dúvida.

A Filosofia Primeira a que se refere Descartes é a Metafísica, compreendida como o estudo dos princípios do conhecimento – entre os quais estão as explicações sobre Deus e a alma e todas as noções claras e simples que estão em nós. Descartes propõe, nos Princípios da Filosofia, uma analogia da filosofia com uma árvore, na qual a Filosofia Primeira, ou Metafísica, seria equivalente às raízes; a Física, que examina a composição do universo, seria o tronco; e as outras ciências seriam os ramos da árvore.

As noções (ou idéias) claras, distintas e simples que são o objeto da metafísica são aquelas sobre as quais: por serem claras, se impõem em sua verdade imediatas, sendo indubitáveis; por serem distintas, não podem ser confundidas com nenhuma outra; e, por serem simples, não podem ser divididas em idéias ainda mais simples, sendo elas o resultado final da análise e o ponto de partida da construção das idéias complexas.

Para alcançar o conjunto de princípios fundamentais que constituirão a base de todo o conhecimento verdadeiro, Descartes busca um ponto de partida indubitável.

O método que utiliza para encontrar esse ponto de partida é a dúvida hiperbólica. A dúvida hiperbólica não é uma dúvida ceticista, porque o objetivo da dúvida hiperbólica não é duvidar, como os céticos fazem, da possibilidade de o conhecimento humano atingir a verdade. A dúvida hiperbólica é, pelo contrário, um método racional de investigação – é voluntária, sistemática e provisória. O objetivo da dúvida cartesiana é colocar o conhecimento sobre um fundamento seguro. Para esse fim, devemos suspender o juízo sobre qualquer proposição cuja verdade possa ser questionada, ainda que remotamente. Os critérios para o que pode ser aceito tornam-se cada vez mais restritivos, à medida em que somos convidados a duvidar do que nos é dado pela memória, pelos sentidos e até pela razão, porque isso tudo pode nos enganar.

Esse processo acaba sendo dramatizado pela figura do Deus enganador, que, para mais fácil aceitação, é tomado como o Gênio Maligno, que emprega toda a sua indústria para nos enganar sempre, de modo que nossas lembranças, nossos sentidos e nossa razão nos conduzam sempre ao erro.

O propósito da dúvida é encontrar um ponto de certeza que esteja a salvo do Gênio Maligno – certeza que Descartes formula no famoso Cogito ergo sum, que representa a descoberta de que se eu posso ser enganado e me enganar, então eu sou alguma coisa.

A partir dessa certeza fundamental, Descartes procura as próximas certezas. A primeira pergunta a partir do Cogito deve ser: “se eu sou, o que sou?”. Descartes, então, utiliza um método negativo para chegar a uma certeza positiva: se posso imaginar que, mesmo eu sendo algo, meu corpo e o mundo não existem, então eu não sou meu corpo nem sou semelhante ao mundo. Minha natureza, portanto, é o pensamento. Ou seja: eu sou uma alma, e a alma é a substância pensante, em oposição à substância extensa do mundo e dos corpos.

A certeza de que eu sou uma substância pensante é clara e distina: não posso duvidar dela, e ela me aparece com distinção, como uma intuição. Intuição, para Descartes, é justamente a visão racional da evidência.

Investigando então as idéias, partindo dos dados disponíveis neste ponto, Descartes chega à conclusão de que elas são de três espécies: as idéias que têm origem fora do sujeito, fora de mim, e são resultado da apreensão do mundo pelos sentidos; as idéias que são originadas de minha imaginação; e a idéia de Deus, que não posso ter apreendido pelos sentidos, posto que não é semelhante às coisas externas, nem posso ter imaginado, visto que as qualidades de Deus (ser uma substância infinita, eterna, imutável, onipotente, onisciente e pela qual todas as coisas foram criados) são tão grandes que eu não poderia tê-las inventado.

A idéia de Deus, portanto, só pode ter sido imprimida em minha alma pelo próprio Deus. A essa prova da existência de Deus, Descartes adiciona seu argumento ontológico, que diz que, se Deus é um ser perfeito, e a perfeição exige, além das noções de eternidade, infinitude, onipotência, onisciência, também a noção de existência, então Deus não pode não existir. Se posso conceber um ser perfeito, então esse ser perfeito necessariamente existe e é a causa da idéia de ser perfeito que tenho inata.

Com a certeza da existência de Deus, o argumento do Gênio Maligno perde sua força, pois Deus não pode enganar – ou não seria Deus.

Assim, neste ponto da argumentação das Meditações se encerra a exigência da dúvida metódica, dado que a prova da existência de Deus garante a veracidade do mundo externo (pois Deus não pode desejar me enganar, ou não seria Deus e sim um Gênio Maligno) e das verdades da razão, como as verdades matemáticas. A partir daqui, é possível fazer ciência, pois se construiu uma fundamentação sólida para o conhecimento verdadeiro.

Um dos aspectos mais importantes da filosofia de Descartes é a rejeição de toda e qualquer autoridade distinta da razão no processo da fundamentação do conhecimento. Descartes proclama a independência da filosofia, que deve se submeter apenas à razão – e essa independência se estende à física e a todas as ciências. As três primeiras Meditações insistem justamente nessa idéia: a concepção de que apenas a razão pode, por meio de um método construído pela própria razão, garantir o conhecimento verdadeiro – claro e distinto – das coisas. Em outras palavras, a única garantia da ciência é a razão.


Fonte: http://oficinadefilosofia.wordpress.com/2007/01/23/a-importancia-das-meditacoes-de-descartes/


Meus eternos agradecimentos ao Prof. Franklin Leopoldo e Silva, que, na USP, tanto me ensinou sobre Descartes.



Kierkegaard: o indivíduo diante do absoluto

Franklin Leopoldo e Silva

Bergson afirmou que a originalidade de uma intuição filosófica se mede pelo poder de dizer “não” a tudo aquilo que a época aceita como verdade constituída. Assim, uma nova filosofia não se faz desde logo pela coerência de uma sucessão de afirmações, mas, sim, por uma negatividade que, a princípio, pode parecer até mesmo obstinação. Depois, esse ímpeto de contradizer se revelará como a primeira manifestação da força da convicção.

Esse é certamente o caso de Kierkegaard, que viveu de 1813 a 1855 na Dinamarca, país que, como quase toda a Europa, estava nessa época sob o império da influência cultural de Hegel (1795-1831), de quem se pode dizer que teria sido o autor do mais vasto sistema de compreensão da totalidade que se produziu na filosofia. Com efeito, provavelmente não se encontre na história do pensamento uma tentativa de articulação compreensiva que manifeste igual poder de abrangência do curso da história humana por meio de uma lógica que incorpora todos os movimentos da realidade, situando todos os pormenores da experiência vivida na dimensão de uma racionalidade universal entendida como síntese absoluta em que todas as aventuras particulares do espírito encontrariam lugar e sentido, de acordo com a realização necessária do Absoluto.

Sujeito e objeto, indivíduo e história, arte e religião, sociedade e Estado, ação e moralidade, tudo poderia ser explicado através de uma visão retrospectiva de uma filosofia que teria encontrado finalmente o método adequado para sobrevoar a História e nela observar uma trajetória que se teria constituído por meio de uma perfeita adequação entre lógica e realidade, finalmente revelada na mais alta expressão do Espírito, capaz de conciliar em si todas as contradições do drama humano, verdadeira síntese de finito e infinito. Tal poder explicativo, em que as singularidades de todos os processos de vida acabam por se manifestar na universalidade, em que a multiplicidade complexa se revela unidade absoluta, em que a contingência e a oposição se transfiguram em necessidade e verdade, impõe-se aos contemporâneos – e mesmo à posteridade – como a mais perfeita realização da capacidade especulativa do pensamento: a resposta a todas as perguntas.

E, no entanto, diante dessa impressionante construção intelectual, em que a própria Razão parece transparecer na sua essência, Kierkegaard diz: não. E por um motivo muito forte. Nessa representação intelectual da realidade, em que a articulação dialética se mostra com uma vitalidade a que tudo teria de se submeter, falta algo de fundamental: a consideração da realidade singular do indivíduo como dado primário e irredutível. A incorporação do singular no universal revela uma lógica pautada pela anterioridade do conceito em relação à experiência vivida. Se o sentido do evento singular só pode aparecer verdadeiramente à luz de uma universalidade finalmente revelada, é porque todo singular, na efetuação da sua particularidade, já possuía um sentido vinculado ao universal em vias de realização. Em outras palavras, a existência singular é pensada, no sistema hegeliano, sempre em função de uma razão universal à qual essa existência estaria a priori submetida. Dessa maneira, julga Kierkegaard, a realidade da existência, que é sempre individual e singular, dissolve-se numa totalidade universal formalmente concebida. O que Hegel teria ganhado em termos de ordenação lógica e conceitual, ele teria perdido em termos de realidade concreta.

Esse prejuízo foi incorporado ao sistema como sendo uma virtude, porque o pressuposto filosófico de Hegel, que nele figura a ambição que de modo geral anima todo projeto filosófico, é o de uma explicação racional completa desde os fundamentos até as últimas conseqüências. Ora, na medida em que o instrumento da razão é o conceito, a explicação pretendida somente pode ser construída através de um corpo conceitual dotado de uma lógica capaz de articulá-lo em sua totalidade, com a mesma evidência presente do começo ao fim. A certeza dos fundamentos antecipa a verdade da totalidade e a necessidade com que o percurso se mostra quando visto a partir da totalidade realizada confirma a evidência dos fundamentos. Essa dupla visão do verdadeiro aparece a Kierkegaard como característica de um sistema formalmente demonstrado, em que os acidentes do percurso finalmente se revelam como aparências de uma necessidade implícita desde o princípio. Assim, o sistema hegeliano se definiria como a subordinação da realidade ao conceito e se constituiria a partir da hierarquia lógica que vincula universal e singular.

A pretensão de certeza dos fundamentos indica que a totalidade do sistema de Hegel é orientada por uma concepção abrangente de Razão: não se trata apenas de uma racionalidade subjetiva que constituiria a realidade por representação. Para Hegel, segundo uma fórmula tornada célebre, “tudo que é real é racional e tudo que é racional é real”: com essa reciprocidade, que identifica lógica e realidade, Hegel pretende escapar da racionalidade meramente subjetiva, sem, no entanto, recair num realismo que faria da subjetividade – ou da razão subjetiva – mero reflexo ou efeito dos objetos, ou da racionalidade objetiva. A superação dessa dualidade resulta numa relação de imanência da razão à realidade em todos os seus aspectos. Ora, essa concepção mais larga da racionalidade implica um maior rigor no tratamento da generalidade, exatamente porque Hegel deseja escapar de aspectos parciais ou particulares da Razão. Assim, é por conta da necessidade do percurso em direção ao universal que é preciso superar a dicotomia sujeito/objeto. Para Kierkegaard, interessa particularmente uma conseqüência desse percurso sistemático: a pretensa superação da subjetividade.

Observe-se que, para Hegel, o que está implicado nessa superação é a necessidade de ultrapassar a evidência subjetiva que, para ele, ainda seria apenas uma figura da verdade. Ora, para Kierkegaard, é evidente que, sendo a realidade substancialmente o indivíduo, a verdade é subjetiva. Mais que isso, “a verdade é a subjetividade” porque unicamente na subjetividade está o lugar da experiência vivida de modo concreto e singular. Para avaliar o alcance dessa oposição de Kierkegaard a Hegel, é preciso compreender o significado de sujeito e de experiência subjetiva para o pensador dinamarquês.

Assim como Hegel via na universalidade a realização do absoluto, Kierkegaard vê a subjetividade como absoluta e a experiência subjetiva como irredutível. Mas esse caráter absoluto da subjetividade não quer dizer que ela seja algo como uma realização lógica completa. Pelo contrário, a subjetividade é absoluta porque, para o homem, é absolutamente impossível superar a sua condição finita: a experiência humana está absolutamente encerrada na finitude e esta se mostra como a singularidade individual que deve ser vivida em cada caso. O singular não se relaciona com o universal da mesma maneira como o particular se relaciona com o geral. A vinculação lógica dos termos nada nos diz acerca da irredutibilidade da experiência do indivíduo singular, porque essa experiência possui, fundamentalmente, uma dimensão existencial e religiosa que escapa à conceituação racional.

Essa experiência significa antes de tudo estar diante de Deus, isto é, estar diante do infinito não enquanto presença imediata, mas enquanto ausência, distância, afastamento, porque a condição do homem, sendo a do pecado, o coloca irremediavelmente distante da divindade. Nesse sentido, Deus como absoluto é sentido mais como distância absoluta que como proximidade ou intimidade. A ausência e o afastamento definem a condição humana da qual cada indivíduo faz a experiência, que se reveste, portanto, de dramaticidade a ser vivida singularmente. Essa concepção severa da relação entre Deus e o homem tem suas origens no protestantismo luterano, mas foi exacerbada no pensamento de Kierkegaard, para quem a experiência cristã consiste na aceitação e na vivência do “escândalo da cruz”. Nada seria mais contrário ao cristianismo que uma perspectiva triunfante: a ressurreição não acomoda o sofrimento à certeza de uma felicidade futura, porque o Cristo presente ao cristão é o homem-Deus torturado e crucificado por causa dos pecados dos homens. Assim, a comunicação com esse Cristo sofredor só pode ser feita através do sofrimento, uma vez que o homem, persistindo no pecado, permanece como ocasião do sofrimento de Cristo.

A partir dessa concepção radical, Kierkegaard critica de forma contundente o cristianismo de sua época, institucionalmente adaptado ao mundo através de toda sorte de concessões e que faz com que os cristãos estejam muito longe de serem testemunhas da Paixão, como exigiria um cristianismo autêntico. No limite, o cristão é uma figura inexistente: no máximo, podemos nos esforçar para nos tornarmos cristãos, e esse seria o primeiro passo para uma verdadeira reforma do cristianismo. A institucionalização da comunidade cristã representa uma infidelidade a Cristo: a experiência religiosa, vivida existencialmente, é solitária e angustiada; a fé não traz certeza nem tranqüilidade; trata-se de uma opção constantemente renovada por tornar-se aquilo que ainda não se é. Nenhuma igreja pode tornar estável e tranqüila uma fé que deve ser vivida no “temor e tremor”.

Por isso o paradigma do crente é Abraão, figura emblemática no pensamento de Kierkegaard, por ter colocado a fé acima de todas as certezas mundanas, mesmo aquelas mais moralmente arraigadas na natureza humana. No episódio em que Deus pede o sacrifício de Isaac, todos os critérios humanos são invalidados, todas as leis são anuladas pela força da palavra de Deus, sentida unicamente pela fé. Essa experiência vivida na solidão, no silêncio, na incerteza de sua própria origem e justificativa é o ponto mais alto que o indivíduo pode atingir – e esse ponto coincide com o desamparo, com a angústia diante do absoluto incompreensível. Nenhuma mediação nos faria superar essa distância; somente o salto no abismo insondável que nos separa do infinito pode equivaler à vivência real da fé.

Se essa é a condição humana, se é esse o drama da subjetividade, não há como pretender atingir qualquer certeza acerca de seus fundamentos. Por isso a realidade da experiência individual, subjetiva e singular, é vivida na incerteza e a partir da ausência de fundamentos. Não há como construir um sistema geral em que a subjetividade seja explicada como um momento a ser absorvido numa universalidade mais compreensiva, como pretendia Hegel. O instante da decisão de Abraão não pode ser explicado; não podemos oferecer mediações que o tornem racional ou susceptível de ser racionalmente incorporado. Ele é único e irredutível como a subjetividade. Nesse sentido, conceituar a subjetividade é torná-la abstrata; explicá-la é destruir a sua realidade.

Kierkegaard refere-se a si mesmo como um pensador religioso. Mas a religião não desempenha nele a função de nos fazer compreender fundamentos da condição humana a que a filosofia não nos permitiria chegar. A religião não antecede nem sucede à razão: assim como entre as duas não há medida comum, também de pouco adiantaria proclamar a incomensurabilidade. Os dogmas do cristianismo não são verdades superiores à razão; são princípios misteriosos da singularidade da nossa experiência subjetiva: só podemos explorá-los vivendo-os de forma encarnada. Aquilo que é vivido subjetivamente é irredutível à razão analítica não porque seja uma experiência psicológica em si inefável, mas porque constitui a vivência do paradoxo e do mistério.

Por isso a experiência da condição humana passa pelos três “estádios” enumerados por Kierkegaard. O primeiro é o estético em que o indivíduo adota como critério da existência a busca de um prazer idealizado, que nunca poderá ser realizado no mundo. Na sucessão pela qual aceita e recusa tudo que lhe é ofertado pelo mundo, o indivíduo vê a realização do ideal se afastar cada vez mais. Essa negação romântica do mundo significa a experiência vivida na imediatidade. Segue-se o estádio ético em que a vivência do imediato é substituída por uma forma de vida que pretenderia conferir algo de universal à descontinuidade da experiência. Não mais a indiferença, mas o compromisso, isto é, a escolha de valores que conferem estabilidade à existência, a opção por algo que seja mais que o relativo a si mesmo e inclua uma dimensão geral da vida, isto é, a vida com os outros. Para o homem ético, a realidade vivida é duradoura e não apenas transitória. Mas essa racionalidade ética se mostra insuficiente, porque o indivíduo sente que o absoluto escapa às normas da razão e que a lógica pode manifestar fragilidade. Passa então ao estádio religioso: a religião (cristã) não se resume a normas que devem ser obedecidas como se fossem regras éticas; o pecado não é relativo a normas eventualmente não obedecidas, mas é uma espécie de erro absoluto, já que é cometido diante de Deus. Essa diferença faz com que o indivíduo passe da imanência das normas éticas à transcendência do Bem. A consciência do pecado é um processo de interiorização que leva a essa transcendência. O pecado não é histórico nem relativo, mas absoluto no sentido de absolutamente individual; a partir dessa singularidade o homem se coloca diante de Deus como absoluto, mas não um absoluto pensado objetivamente e, sim, um segredo sentido na profundidade da consciência. O estádio religioso se aproxima da experiência da interioridade.

E é pela interioridade que o indivíduo se faz; nela está a sua singularidade, o seu segredo, a sua absoluta subjetividade – e também a sua dignidade, porventura encontrada no fundo da miséria. Não há mediação exterior pela qual se possa atingir essa dimensão, nem normas pelas quais se possam solucionar os conflitos que aí são vividos. A subjetividade não é uma coisa nem uma forma: é quase um impasse. Talvez se possa dizer que ela é um pathos porque a experiência cristã da subjetividade consiste em responder a um chamado que seria, ao mesmo tempo, de um lado irredutivelmente pessoal, singular e específico e, de outro, proveniente de uma transcendência infinitamente distante, e a que o profeta se referiu como Deus Absconditus.

O que teria Kierkegaard a dizer para nós, que vivemos num mundo ao mesmo tempo tão povoado de egos e tão vazio de indivíduos singulares, um mundo habitado por tantos desejos e tão abandonado pela subjetividade – um mundo em que vigora a obsessão da exterioridade e a opressão da interioridade? Talvez a dramática atualidade daquele que viveu e morreu em defesa das prerrogativas do sujeito consista apenas em nos levar a pensar o quanto tem sido negativa a nossa experiência da subjetividade, que temos feito sob as diversas ditaduras da exterioridade e as mais variadas formas de alienação. Kierkegaard se esforçou por dizer aos seus contemporâneos que eles estavam vivendo a perda de si mesmos. Essa mensagem é ainda mais válida para nós.

Franklin Leopoldo e Silva é professor de História da Filosofia Contemporânea na USP.



A FILOSOFIA E A VISÃO COMUM DO MUNDO

Oswaldo Porchat

1.

Se me disponho a filosofar, é porque busco compreender as coisas e os fatos que me envolvem, a Realidade em que estou imerso. É porque quero saber o que posso saber e como devo ordenar minha visão do Mundo, como situar-me diante do Mundo físico e do Mundo humano e de tudo quanto se oferece à minha experiência. Como entender os discursos dos homens e meu próprio discurso. Como julgar os produtos das artes, das religiões e das ciências.

Mas não posso esquecer todos os outros que filosofaram antes de mim. Num certo sentido, é porque eles filosofaram que me sinto estimulado a retomar o seu empreendimento. O legado cultural da espécie põe à minha disposição uma literatura filosófica extremamente rica e diversificada, de que minha reflexão se vai alimentando. Se me disponho a filosofar, tenho também de situar-me em relação às filosofias e a seus discursos, tenho de considerar os problemas que eles formularam e as soluções que para eles propuseram.

Nesse contato com as filosofias e no seu estudo, faço a experiência de sua irredutível pluralidade, de seu conflito permanente e de sua recíproca incompatibilidade. A consciência desse conflito e dessa incompatibilidade exprime-se em seus discursos, aliás, de modo quase sempre bastante explícito. Porque cada filosofia emerge no tempo histórico, opondo-se polemicamente às outras filosofias, que ela rejeita e anatematiza no mesmo movimento pelo qual se instaura. Contra os outros discursos filosóficos, cada novo discurso vem propor-se como o “bom” discurso. Qualquer que seja o seu projeto, o de “editar” o Real ou o de propor uma crítica do conhecimento, o de orientar a práxis humana ou o de efetuar uma análise “terapêutica” da linguagem, pertence, em geral, a todo discurso filosófico o dever impor-se como a única maneira correta de filosofar. Sob esse prisma, vale dizer que cada um deles de algum modo se propõe como a solução adequada do conflito das filosofias. Por isso mesmo, obriga-se a argumentar em causa própria, no afã de legitimar-se em face dos rivais e de validar a posição privilegiada que para si reivindica na arena filosófica. Pretensão que os outros discursos evidentemente desqualificam, opondo argumentos aos seus argumentos e reacendendo o conflito.

Dispondo-me a filosofar, abordo criticamente os discursos filosóficos. E cedo descubro, então, que nenhum discurso filosófico é demonstrativo, mesmo num sentido fraco da palavra, contrariamente ao que tantos filósofos pretenderam. Dou-me conta de que a retórica é a lógica da filosofia. De que, com um pouco de boa vontade e algum engenho, sempre se pode construir um discurso filosófico bem argumentado a favor de ou contra qualquer ponto de vista. Por outro lado, jamais se persuade o auditório que se tem em mente. Os critérios de autovalidação próprios a cada discurso são sempre discutidos e rejeitados pelos outros. Donde a perpetuação inevitável de conflito das filosofias, num testemunho eloquente de sua indecidibilidade básica. Situação essa que parece condenar inexoravelmente as filosofias, todas e cada uma delas, a uma insuperável precariedade, dificilmente compatível com a natureza mesma dos projetos por que elas costumeiramente se definem. Seus discursos, em última análise, parecem impotentes para efetivamente resolver os problemas que elas inventaram. Os céticos, de há muito, tinham feito sobre isso seu severo diagnóstico.

É natural, então, que eu seja tentado a ver, nos discursos das filosofias, meros jogos de palavras, jogos engenhosos e complicados mas que, uma vez apreendidos e analisados, não posso mais levar a sério. Brinquedos dos filósofos com a linguagem, da linguagem com os filósofos, que ela enfeitiçou. É natural, então, que eu desespere de poder filosofar. Por que daria minha adesão a tal visão do Mundo e não a tal outra? Por que assumiria tal atitude filosófica e não tal outra? Assumir qualquer posição filosófica configuraria uma escolha e uma escolha, em última análise, arbitrária, uma vez que sua justificação não constituiria senão um exercício a mais de habilidade retórica. Não vendo como aderir criticamente a um discurso de outrem, por que me cometeria a editar um discurso original e novo, sabendo-o de antemão condenado, por sua própria natureza, à sorte adversa de que todos os outros compartilham? Por que continuar o empreendimento, por que insistir em buscar soluções filosóficas para os problemas das filosofias?

O ceticismo antigo, apesar de sua crítica acerba aos “dogmatismos”, definiu-se por uma investigação continuada e incansável, caracterizou-se como uma filosofia “zetética”. [1] Entendeu que suas razões valiam tanto quanto as do dogmatismo filosófico e que não lhe era possível validar sua própria argumentação cética. [2] Propôs, por isso, a suspensão do juízo, a epokhé, sobre cada uma das questões examinadas. Para seu propósito de abalar o dogmatismo, isso lhe era suficiente. Mas, por isso mesmo, a lógica interna de seu procedimento condenava-o a prosseguir investigando. Essa atitude me parece pouco natural e nada razoável. Porque o razoável e natural é que a experiência repetida do fracasso engendre o desânimo e o abandono da empresa. Se somos mais do que ratos de laboratório, também dependemos, entretanto, das contingências de reforço: sem nenhuma recompensa, desistimos.

Resta-me, ao que parece, dizer adeus às pretensões filosóficas que em vão alimentei, deixar atrás a filosofia. Optar pelo silêncio da não-filosofia e nele recolher-me. Numa decisão de ordem prática e existencial, que se me impõe como justificada, ainda que não seja, por certo, justificável filosoficamente. Contentar-me-ei em ser apenas um homem entre os outros homens. Deixando-me viver, em sua plenitude, a vida comum dos homens. Redescobrindo e revivendo o homem comum em mim.

Os céticos tinham entendido que sua postura filosófica não implicava a renúncia à vida comum. [3] Pondo em xeque os critérios da pretensa objetividade dogmática tomaram o phainómenon, o que aparece, como critério da ação, segundo os ditames da vida. De fato, porém, seu retorno à vida comum não foi completo, porque não souberam mergulhar em sua não-filosofia. A permanência no empreendimento filosófico, a proposta de investigação continuada atestam que eles ficaram a meio caminho. Os céticos não desesperaram da filosofia. Por isso mesmo, não se permitiram suprimir definitivamente o distanciamento que o dogmatismo instaurou entre a filosofia e a vida. Contestaram as soluções dogmáticas, mas preservaram o seu quadro teórico. Guardaram a nostalgia de um espaço extramundano reservado para a investigação filosófica, em oposição ao espaço banal da vida comum à qual, enquanto homens, se apegavam.

Proponho uma ruptura com a filosofia bem mais radical que a do ceticismo. Um mergulho profundo, definitivo e de alma inteira na vida cotidiana dos homens. Não me limito a suspender meus juízos mas, em face dos jogos filosóficos, ouso dizer: “Não jogo mais”. [4] Regresso à humanidade comum e assumo integralmente a sua não-filosofia.

2.

Desenvolvi esse tema num trabalho anterior, o “Prefácio a uma Filosofia”. [5] Sob determinado prisma muitos o entenderam corretamente, sabendo ver que uma exposição autobiográfica era, sobretudo, proposição de um itinerário de ideias e discussão de uma problemática básica para quem se dispõe a filosofar. O conflito das filosofias e sua efetiva indecidibilidade, a inexistência de critérios aceitos para validar as soluções — e os problemas — que elas propõem, a tentação do ceticismo e, bem mais radical, a tentação do silêncio filosófico oferecem-se à “experiência” de qualquer um que empreenda um dia meditar com seriedade sobre a natureza da filosofia.

A atmosfera cultural de nossa época, mais ainda talvez do que ocorreu em outras épocas, parece contribuir para alimentar uma desconfiança sensata e uma justa insatisfação com respeito aos sistemas ou métodos filosóficos. Por um lado, os discursos das filosofias não escapam indenes ao crivo das técnicas modernas de análise linguística, retórica ou lógica do discurso qualquer, nem às investidas da psicologia e da sociologia do conhecimento. Por outro, as grandes transformações que convulsionam, num ritmo vertiginoso, o Mundo dos homens parecem recomendar um primado da prática e da ação sobre a teoria e o discurso. Tudo parece induzir-nos a que nos apliquemos de preferência aos problemas reais e angustiantes da vida comum de nossa espécie, renunciando aos discursos vãos. Redescobrindo o homem comum em nós, quando dele nos tenhamos afastado. Outra postura seria de fuga e alienação.

Essa redescoberta da vida comum, essa reconversão do filósofo ao homem comum que sempre fora, mas que sempre ignorara em sua filosofia e agora reencontra, foi o que propus no trabalho que mencionei. [6] Num segundo momento, eu propunha também uma promoção filosófica de não-filosofia do homem comum, uma revalorização filosófica de sua visão comum do Mundo. [7] Entretanto, o estilo demasiado sucinto de um texto apenas programático, também algumas imprecisões nas ideias propostas deram origem a mal-entendidos e confusões. Proponho-me agora reelaborar algumas noções e explicitar meu pensamento de modo mais claro e amplo sobre alguns pontos mais importantes, corrigindo alguma formulação porventura menos feliz. Tentarei responder a críticas e objeções que me foram feitas, quase sempre oriundas de uma interpretação menos atenta de minhas palavras. Em particular, espero deixar bem patente que minha posição não se pode interpretar, sem mais, como uma mera variante da chamada filosofia do senso comum, ao contrário do que se pretendeu. [8]

3.

Renunciando à filosofia, torno-me apenas um homem comum. A vida comum e cotidiana é tudo aquilo que me resta, ao renegar das filosofias e de suas pompas. Assumo-a e vivo-a integralmente. E, ao modo de homem comum, organizo minha visão do Mundo, necessariamente falha e incompleta, necessariamente pessoal e minha. Mas nada me impede de, enquanto homem comum, considerá-la em sua totalidade e com um olhar mais abrangente, buscando fixar alguns de seus traços mais gerais.

Apreendo-me imerso numa totalidade que me contém e que como tal se me manifesta, numa experiência que é, ao mesmo tempo, de integração e alteridade. Reconheço-a, essa totalidade que me cerca, engloba e transcende, como outra que não eu, como maior e mais poderosa que eu. Experimento essa Realidade, de que sou parte integrante, de modo continuado e irrecusável. É a experiência de minha vida cotidiana, experiência não pontual, mas que se prolonga indefinidamente na memória do passado. Essa Realidade, chamo-a de Mundo. Uma mera expressão, que me facilita o discurso. Direi, então, que minha experiência é, toda ela, experiência do Mundo; que minha vida, eu a vivo no Mundo. Que nele estou irremediavelmente imerso.

O Mundo se me dá numa experiência de riqueza e complexidade. A Realidade se me manifesta cheia de multiplicidades e de unidades, de variações infindas, de diferenças e de semelhanças, estas ao menos relativas. O Mundo me oferece a experiência continuada de um devir no espaço e no tempo. Tempo e espaço que me aparecem como dimensões do Mundo. E eles dimensionam minha vida.
A totalidade, que é o Mundo, se me apresenta constituída por coisas (ou objetos) e processos (ou fatos ou eventos). As coisas me aparecem como semelhantes umas às outras, umas das outras dessemelhantes, umas com as outras integradas, umas das outras separadas. O mesmo se dá com os processos ou eventos. Semelhanças e dessemelhanças, integrações e separações, dão-se em graus diversos e sob aspectos variados. Coisas e processos se combinam e continuamente interagem de modo mais simples ou mais complexo. Se a existência ou devir de uma coisa se pode também dizer um processo ou fato, direi também que o Mundo é a totalidade dos fatos.

A Realidade se me manifesta primeiramente a partir dos processos e coisas que me são mais próximos, por isso mesmo mais familiares. Os eventos do dia-a-dia, os fatos e os objetos ordinários que povoam minha experiência do Mundo. Tudo aquilo que mais imediatamente me circunda e contém. Minha vida, eu a vejo como um processo em meio a esses processos, minha existência, como a de uma coisa em meio a essas outras coisas. Essa porção da Realidade, esse Mundo mais próximo em que minha vida mais imediatamente se insere, é-me por isso mesmo mais importante, tenho por ela um maior interesse existencial.

Esse Mundo mais próximo de mim se me apresenta também como um Mundo habitado por coisas que me são semelhantes, segundo graus diversos de semelhança. Por corpos físicos, como o corpo físico que sou. Por seres vivos, como o ser vivo que sou. Mas, em particular, por homens como eu, seres fundamentalmente semelhantes a mim, seres que sentem, pensam e falam, corpos pensantes como eu, em meio às outras coisas e processos do Mundo. Seres humanos que, como eu, interagem com o Mundo físico que os cerca e, em particular, interagem continuadamente uns com os outros, inextricavelmente imbricados na vida social da espécie. Suas vidas imergem como a minha na experiência cotidiana do Mundo. Nele os homens nascem, sofrem, trabalham, gozam e morrem.

Quanto aos processos de minha vida interior e psíquica, sensações, emoções, prazeres, dores, desejos, sentimentos, cuja existência me é tão manifesta e irrecusável quanto a das coisas e processos físicos, eu os tenho como fundamentalmente análogos aos processos que experimentam os outros homens, em sua vida psíquica e interior. Suas mentes, tenho-as como substancialmente semelhantes às minhas. Em verdade, é porque assim os vejo que os reconheço como homens.

Eu me comunico com eles e eles se comunicam comigo e uns com os outros através da linguagem, a cujo uso foram introduzidos e na qual foram treinados desde a infância pela sociedade, geralmente pela família. Essa linguagem humana se diversifica sob a forma das várias línguas particulares, próprias às diferentes etnias ou nações. E, frequentemente, os homens aprendem as línguas uns dos outros e as traduzem em suas línguas próprias. Essa linguagem, que meu pensamento interioriza, vejo-a como analogamente interiorizada nos pensamentos dos outros homens.

Fundamentalmente semelhantes, os homens são também extremamente diferentes uns dos outros. Diferentes fisicamente, economicamente, culturalmente, moralmente. Fortes ou fracos, ricos ou pobres, exploradores ou explorados, ativos ou ociosos, cultos ou ignorantes, inteligentes ou medíocres, honestos ou perversos. Valores vários impõem-se à sua aceitação, mas que diferem de um para outro homem, de um para outro grupo social. Os mais variados pontos de vista, opiniões, crenças e doutrinas recebem acolhida entre os homens, destarte diferençando-os individual e coletivamente.

Aparece-me também que a maioria dos homens se preocupa egoisticamente apenas com seus problemas pessoais, embora alguns homens se preocupem também com os problemas dos outros. Mas todos buscam seu bem-estar próprio ou felicidade. A vida humana é, em verdade, de prazer e dor, de alegrias e tristezas. Os homens amam-se e odeiam-se, confraternizam-se e guerreiam-se. O Mundo humano encerra muito de sofrimento. E a violência de uns contra outros e a exploração de uns por outros. E a brutalidade das opressões e repressões, das torturas e das guerras. Os homens têm a dura experiência de uma realidade por vezes brutal. Ainda assim, encontra-se neles muita esperança.

Minha imersão no Mundo me aparece irrecusavelmente como mediada por esse Mundo humano, de que faço parte com todos os homens. Apareço-me como um recém-chegado à vida da espécie, à sua cultura e civilização, trazido à vida pela sociedade humana e por ela integrado na sua história. Acolhendo-me, transmitiram-me práticas e costumes, modos de pensar, a linguagem de que me sirvo, os conceitos que nela expresso. Neles eu nasci e por eles fui condicionado. Por isso mesmo, minha experiência do Mundo humano me aparece como absolutamente fundamental. Uma experiência que inteiramente me modela e que me leva a dizer espontaneamente “nós” em lugar de “eu”.

4.

Em verdade, tudo nos leva a falar de uma experiência comum do Mundo, de uma experiência humana comum do Mundo. Caráter esse comum que lhe advém, de um lado, daquela semelhança básica que os homens entre nós reconhecemos, mas, de outro lado, da própria presença do Mundo que se nos manifesta, a todos e a cada um, como o objeto comum de nossa experiência continuada. Esse Mundo-totalidade, Realidade irrecusável que nos transcende, maior e mais poderosa do que nós, nós o conhecemos enquanto seus habitantes, conhecemo-lo como o lugar de nossas vidas, o lugar de nosso mesmo reconhecimento uns dos outros como homens. Nós somos uns com os outros no Mundo. Como indivíduos e como espécie, fomos por ele engendrados e a ele pertencemos. Nele vimos a ser, vivemos e perecemos, assistindo ao desaparecimento uns dos outros. E nos aparece que essa realidade Mundana de que dependemos em nada depende de nós. Nosso desaparecimento individual ou coletivo em nada a afetaria, exceção talvez feita para aspectos superficiais da minúscula região que mais proximamente nos contém. O Mundo nos aparece com dimensões quase infinitas e, se nelas atentamos, aparece-nos que a práxis humana não o modifica senão minimamente. Assim se nos manifesta a presença permanente do Mundo aos homens, a presença contingente dos homens no Mundo. A experiência comum do Mundo nos revela nossos limites e nossa finitude.

Mas essa experiência comum é-o também de nossa inserção e integração no Mundo humano, ancorado naquela Realidade maior. Experiência de uma sociedade que nos precedeu, nos acolheu e formou e nos deverá sobreviver a cada um de nós, como sobreviveu a milhões de outros homens. Experiência, ainda que parcial e limitada, de uma História humana que nos situa, nos define e nos ultrapassa. O mundo humano se nos manifesta, inserido no Mundo-totalidade, como um produto histórico e milenar dos próprios homens, de sua civilização e cultura. Obra comum que, desde tempos imemoriais, os homens vêm construindo. Povoam-no as instituições que inventaram e que evoluem sem cessar no espaço da geografia e no tempo da história. A práxis humana transforma profunda e substancialmente o Mundo dos homens. Técnicas, modos de produção, formas de relacionamento social. Artes, religiões, ciências, filosofias. Atividades que buscam também conhecer o Mundo.
Porque humanos, privilegiamos naturalmente esse Mundo humano, fragmento humano do Mundo.

Privilégio que em nada contradiz nosso reconhecimento do Mundo-totalidade, pano de fundo necessário sobre o qual projetamos nossa história e nossa humanidade. Privilégio que apenas traduz nossa preferência por nós mesmos, em meio às coisas e aos processos do Mundo. Pois o que ocorre no Mundo humano nos diz sempre respeito e, às vezes, muito de perto. Se, com frequência, podemos modificá-lo substancialmente por meio de nossa ação individual ou coletiva, também ocorre com muita frequência que ele se transforme profundamente de modo a contrariar nossas vontades individuais ou nossos programas coletivos. E as mais sólidas de nossas instituições devêm e se desfazem ao longo de nossa história.

Com relação ao Mundo Humano, nossa experiência comum é também a experiência de nossa contingência e precariedade. Precariedade de nossas vidas e de nossas instituições. Imersos na história dos homens, contingência de nosso pensamento e de nossa linguagem, de nossas crenças e de nossos discursos, de nossos pontos de vista. Precariedade e contingência de nossa situação.
Parte importante de nossa experiência comum do Mundo concerne ao uso de nosso discurso comum, que nos serve de meio de comunicação, ao mesmo tempo em que reflete e registra essa mesma experiência. Ele se exprime através das várias línguas particulares que traduzimos umas nas outras. O discurso comum está sempre a dizer o mundo, seu eterno pressuposto, seu referencial permanente. Ele é parte do Mundo, mas o Mundo se diz através dele. E é essa remissão congênita do discurso comum ao Mundo que lhe confere significatividade e inteligibilidade. A significatividade e inteligibilidade que espontaneamente lhe atribuímos, na medida mesma em que dele nos servimos. O Mundo é o universo de nosso discurso cotidiano. Nossa experiência comum do Mundo é continuadamente o tema de nosso relacionamento linguístico com os outros homens. É sobre o Mundo que estamos uns com os outros sempre a conversar e a contar-nos estórias. Os homens estão sempre a informar-nos sobre o estado do Mundo.

Esse nosso discurso comum, somos os homens que o reconhecemos todos como nosso e como comum. Como um comportamento humano no Mundo, evento do Mundo como qualquer outro comportamento humano. Seu objeto, o Mundo, é também o seu lugar. E conhecemos sua contingência pois nos aparece que nosso discurso não faz falta ao Mundo. Não nos parece que as galáxias se preocupem com ele. E conhecemos sua precariedade, sua frequente impotência para dizer corretamente as coisas e os fatos do Mundo, embora o consideremos basicamente adequado ao Mundo. Pois nos servimos dele com confiança espontânea e o temos como fundamentalmente veraz.

Nele dizemos nossa percepção do Mundo, nele registramos nossas observações do que se oferece à nossa experiência, nele formulamos as certezas e evidências da vida cotidiana. Nele exprimimos nossos pensamentos, formulamos nossas opiniões e nossas crenças, que dizem o Mundo sob este ou aquele prisma. Com ele raciocinamos e inferimos, segundo regras que aceitamos e reconhecemos, reflexiva ou espontaneamente. Com ele nos aventuramos a propor explicações sobre as coisas e processos do Mundo, que buscamos melhor conhecer. Nele construímos nossas teorias e doutrinas, nossas ciências e filosofias, produtos superiores de nossa atividade pensante. Pensamentos, opiniões e crenças, teorias e doutrinas, ciências e filosofias constituem sempre, deste ou daquele modo, pontos de vista nossos sobre o Mundo que o nosso discurso exprime. Explícita ou implicitamente, o Mundo é sempre o seu objeto único e permanente. Eventos do Mundo humano são processos, portanto, do Mundo que a ele revertem. Assim os conhecemos.

Alguns partilham muitas das nossas opiniões e crenças, muitos também compartilham conosco algumas dentre elas. E há todas aquelas — e elas não são poucas — que toda a nossa comunidade, ou a maior parte dela, aceita conosco. Algumas crenças e pontos de vista parecem-nos de algum modo merecer mesmo a aceitação comum da espécie. Essas opiniões e crenças compartilhadas pela comunidade constituem o que chamamos costumeiramente de senso comum. De um modo geral, podemos dizer que o senso comum varia muito no espaço e no tempo, no interior de uma comunidade ou de uma comunidade para outra.

Nossa confiança no discurso comum é grande, porém não ilimitada. E nele mesmo dizemos a consciência que temos de suas limitações, que são nossas. Reconhecemo-lo capaz de verdade e acertos, mas também de falsidade, erros e enganos. Mudamos com frequência nossos modos de pensar, voltamos atrás em nossas opiniões, abandonamos velhas crenças que rejeitamos como falsas e substituímos por crenças novas. Corrigimos continuamente nossos pontos de vista, tanto sobre as coisas mais banais e triviais quanto sobre as mais sérias e importantes. A consciência de nossos enganos e desacertos não nos leva à descrença e à dúvida generalizada ou à desconfiança sistemática do discurso, recomenda-nos somente uma prudência maior.

Uns dos outros com muita frequência divergimos, assistimos continuamente ao choque de opiniões, ao conflito de ideias entre os homens. Criticamos e rejeitamos os pontos de vista uns dos outros, denunciando-os como falsos ou mal fundamentados. Discutimos, argumentamos, lançamos mão da experiência, de testemunhos, invocamos a autoridade. Procuramos persuadir-nos uns aos outros, às vezes em parte conseguimos. As divergências entre teorias científicas ou outras, o conflito incessante das filosofias aparecem-nos apenas como aspectos particulares, ainda que importantes, desse panorama geral. Crítica e autocrítica permanentes são a vida cotidiana do discurso.
Essa pluralidade de pontos de vista contrários ou mesmo contraditórios configura, portanto, um traço particularmente notório da prática humana do discurso, que não nos parece senão muito natural. Eles se nos apresentam como tematizações diferentes da leitura de um mesmo texto básico, como variantes na interpretação mais geral de uma mesma experiência fundamental e comum, porquanto experiência de um mesmo Mundo. Pois nossas opiniões e doutrinas, nossas crenças velhas e novas, nossos acordos e divergências dizem sempre respeito ao mesmo e velho Mundo, que lhes serve sempre de pano de fundo.

5.

Eis alguns traços gerais de minha visão do Mundo, que considero particularmente relevantes e que julguei oportuno fixar. Essa visão do Mundo se me manifesta, ela própria, como minha, conforme as perspectivas que nela mesma para mim se desenham sobre o Mundo físico e o Mundo humano nos quais minha experiência da vida cotidiana se insere. E a visão do Mundo de um homem não inculto, com alguma dose de espírito crítico, situado geográfica, histórica, social e culturalmente, expressa num discurso que reflete inegavelmente essa situação e os condicionamentos de vária natureza que ela envolve. Esse discurso tem uma coloração fortemente pessoal e subjetiva, ele traz a marca de minha personalidade e de minha biografia. Por isso mesmo, nele se retratam de algum modo o espaço e o tempo em que vivo, a sociedade a que pertenço, o grupo social em que estou mais diretamente integrado, tanto quanto as idiossincrasias de minha formação e cultura. Um discurso que ao mesmo tempo manifesta o caráter cultural das categorias de que se serve e as particularidades características da própria língua em que se escreve.

Entretanto, eu pretendo que não se trata de uma visão do Mundo meramente pessoal e subjetiva. Ou de mera expressão de uma situação histórica e social determinada. Em verdade, ouso mesmo dizer que se trata, de um certo modo, de uma visão comum do Mundo. Sei quanto essa expressão pode chocar espíritos filosoficamente prevenidos ou demasiadamente influenciados por um relativismo sociológico ou antropológico exacerbado. Por isso, quero explicar um pouco o que tenho em mente, tentando desarmar alguns preconceitos.

Quero primeiramente relembrar que aquela visão minha do Mundo, cujos traços mais gerais acima esbocei, foi muito espontaneamente que eu a organizei quando, tendo renunciado à filosofia, quis ser apenas um homem como os outros, retornando decididamente à vida comum e cotidiana para vivê-la em sua plenitude. Uma visão do Mundo que tranquilamente se me impôs, sem nenhuma opção ou decisão de minha parte. Que não exprime adesão à teoria ou preferência por doutrina. E que pacificamente aceito e assumo, expressão inteligente e natural de meu mesmo relacionamento com a Realidade.

O que pretendo é que essa minha visão do Mundo tem muito em comum com as visões que os outros homens, meus semelhantes, têm do Mundo, eles que estão imersos como eu na experiência cotidiana da vida comum. Visões do Mundo que se lhes impõem tranquilamente, sem opções ou decisões de sua parte. Visões em que espontaneamente registram, antes de qualquer adesão à teoria ou preferência por doutrina, sua experiência básica da Realidade em que se reconhecem integrados. Em verdade, todos sabemos que essas múltiplas visões do Mundo são, também, extremamente diferentes e variadas, refletindo a infinda diversificação das situações humanas, incorporando elementos de toda procedência e natureza, exibindo as mais diversas ontologias. Nem concebemos que pudesse ser de outra maneira. E experimentamos todos quanto nossas próprias visões particulares do Mundo se modificam substancialmente no decorrer de nossas vidas, por exemplo rejeitando velhas entidades ou acolhendo outras novas.

O que pretendo é que há muita semelhança, também, entre as diferentes visões que os homens têm no Mundo. Que há como uma interseção de todas elas, inclusive a minha, que não é vazia. Descontadas as particularidades próprias a cada um, minha visão do Mundo me aparece como algo que eu compartilho com os outros homens. E assim aparece a cada homem sua visão do Mundo. As diferentes visões do Mundo exibem algo como um núcleo básico, razoavelmente rico e denso, comum a todas elas. Aqueles traços gerais de minha visão do Mundo que acima julguei relevante fixar aparece-me que integram esse núcleo central e comum. Todos ou uma boa parte deles, num grau maior ou menor, sob este ou aquele aspecto. Por certo não se tentou — seria acaso possível? — um inventário rigoroso e exaustivo, propus apenas algumas indicações que me parecem fundamentais. Aparece-me que se encontram esses mesmos ingredientes, desta ou daquela maneira, em cada visão humana do Mundo. Algo como o mobiliário-padrão da experiência humana do Mundo. Trivialidades de nossa vivência do Mundo físico e humano, sobre as quais estamos todos basicamente de acordo, coabitantes confessos da mesma Realidade. Que incluem boa parte do conteúdo de nossa experiência mais imediata da vida cotidiana, nós mesmos e as coisas e eventos que mais de perto nos cercam e afetam, os outros seres com que temos constante comércio, sobretudo os outros homens. Não vejo por que se precisaria de uma definição rigorosa quanto ao que deve ou pode ser incluído nele, ou dele ser excluído.

Na exata medida em que nos reconhecemos uns aos outros como homens que vivem a experiência comum do Mundo, podemos falar de uma visão comum do Mundo, pressuposto irrecusável dessa experiência comum, assim como da comunicação que nos une através de nosso discurso comum. Nós todos a postulamos implicitamente — quando não a tematizamos explicitamente — a cada passo, a cada gesto, a cada palavra. A existência de uma visão comum do Mundo é um fato da vida cotidiana, não um ponto de doutrina. Em verdade, experiência comum do Mundo e visão comum do Mundo são as duas faces de uma mesma moeda. Temos cada uma delas ao ter a outra. A visão comum do Mundo não é mais que nossa consciência humana da experiência comum da Realidade. Essa experiência nos apareceu como fundamentalmente comum, enquanto experiência de um mesmo Mundo. E nossas visões particulares do Mundo desenham uma visão comum, enquanto visões do Mundo, reflexos naturalmente multiplicados da presença do mesmo Mundo a todos nós. O Mundo nos aparece como o objeto uno e comum de nosso olhar humano e múltiplo, suporte objetivo e sólido de nossas visões particulares.

O Mundo sustenta os “Mundos” dos homens.

Nada leva a supor que o fato inegável de haver uma visão comum do Mundo requeira uma forma privilegiada de discurso para descrevê-la. Discursos variados podem adequadamente propor-se para o mesmo efeito, desde que se reconheça que dizem fundamentalmente a mesma coisa. A descrição sucinta, que acima propus, de alguns dos aspectos mais gerais que caracterizam a visão comum constitui apenas uma dentre muitas formas possíveis de organizar um discurso que a exprima.
Por outro lado, não posso obviamente alimentar a pretensão de tornar acessível a qualquer um o discurso que para aquele fim utilizei. Sua compreensão adequada requer, por certo, um grau de cultura e um certo poder de abstração de que boa parte dos homens não são capazes. Mas somente por um grosseiro sofisma se poderia sustentar que, sob pena de contradição, a descrição da visão comum do Mundo se devesse formular num discurso acessível ao comum dos homens. Apenas posso pretender que meu discurso possa ser retomado por um homem suficientemente culto e inteligente para entendê-lo e fazê-lo seu. Isto é, que ele possa ser reconhecido, por quem tenha as condições culturais e intelectuais para apreciá-lo, como uma descrição razoavelmente adequada, ao menos em linhas gerais e, eventualmente, após tal ou qual modificação, reformulação ou mesmo correção, da perspectiva comum que homem tem sobre o Mundo. Ainda que, em muitos e muitos homens, a visão do Mundo seja reconhecidamente tosca, mal organizada ou mesmo desconexa e confusa.

Espero ter dissipado em parte o mal-estar que pode acometer alguns espíritos mais finos e delicados por causa da expressão “visão comum do Mundo”. Explicado que foi o seu uso, parece-me que podemos usá-la sem escrúpulos exagerados. Aos que gostam de insistir nas diferenças e particularidades culturais, históricas, sociais, psicológicas e outras que efetivamente distinguem e opõem mesmo umas às outras as visões particulares que os homens têm do Mundo, peço apenas que não se esqueçam de que o mesmo reconhecimento e especificação dessas particularidades e diferenças pressupõe a representação de uma experiência comum da qual os homens somos os sujeitos e na qual nos reconhecemos como coabitantes do mesmo Mundo. Em outras palavras, o próprio reconhecimento das visões particulares pressupõe o fato da visão comum.

E os homens comuns sabemos todos que assim se passam as coisas. Não fiz mais que explicitar postulados e pressupostos. Aquilo que todos vivemos e pensamos e dizemos sobre o assunto. Inclusive os filósofos, quando se rendem às exigências da vida diária e põem momentaneamente de lado as suas especulações. Quando se esquecem de fazer filosofia.

Até aí, nenhuma filosofia. Estamos apenas com o homem comum, nos domínios de sua não-filosofia. [9] Para quem se cansou do conflito das filosofias e a elas renunciou, dizendo adeus aos seus discursos, essa renúncia significou um contentar-se com a visão comum do Mundo, um assumir gostosamente a não-filosofia dessa visão comum. Tal o sentido do mergulho profundo na vida cotidiana, para saborear sua rica e plena realidade. Um contentar-se com a ingenuidade do homem comum. Ou com o que os filósofos assim apelidaram. E que, entregues às suas especulações, eles quase sempre desprezaram em suas teorias.

6.

Eis que se pôde operar, então, o grande salto qualitativo que descrevi no “Prefácio a uma Filosofia”. [10] Em poucas palavras, a promoção filosófica da visão comum do Mundo. Sua valorização filosófica, mediante sua transmutação em visão filosófica do Mundo. Como é isso possível? Parece-me que foi esse um dos pontos, naquele meu trabalho, que mais dificuldades suscitaram e que foram menos compreendidos. Tenho, no entanto, a convicção de que, se ele se apreende corretamente, se obtêm as condições para tentar uma verdadeira revolução filosófica.

Ao philósophos que se tornou homem comum e que tranquilamente compartilha da visão comum do Mundo ocorre um dia que, em sua renúncia desesperada à filosofia, em face da indecidibilidade insuperável do conflito dos discursos filosóficos, ele fora vítima da mesma hýbris que os alimenta. Ele não desesperara se não por ter esperado em demasia, [11] seu desespero proviera da esperança excessiva e injustificada que o Lógos nele incutira. Ele não escolhera pensar a questão da filosofia na forma de conflito das filosofias, [12] mas deparara com o espetáculo desse conflito, constatara a incompatibilidade mútua e radical entre os universos filosóficos em disputa. Ele não nutrira a pretensão de construir uma meta-filosofia exaustiva, ele aspirara somente a encontrar uma definição filosófica particular cujo discurso se pudesse justificar, de modo filosoficamente decisivo e irrecusável, contra os discursos rivais: outra não era a pretensão de todo discurso filosófico. Assim, ele não escolhera pensar a filosofia na forma do poder argumentativo, ele travara conhecimento com as argumentações retóricas por que os discursos filosóficos tentam validar-se e impor-se. Ele fizera a experiência que se oferece imediatamente a quantos se dispõem a filosofar e procuram, para tanto, familiarizar-se com as diferentes posturas filosóficas.

Mas ele se apercebe, agora, de que as filosofias o tinham sub-repticiamente persuadido a identificar a filosofia com os sonhos de seus projetos. A crer que o destino da filosofia se jogava inteiro no espaço que forjaram para o seu conflito, se associava de modo indissolúvel à autonomia radical que o Lógos se atribuía, dependia por completo da vitória impossível de um dentre os muitos contendores. Em suma, ele fora levado a acreditar que a sorte da filosofia se jogava ao nível dos discursos filosóficos. E fora convencido de que a visão comum do Mundo constituía algo como um ponto zero do filosofar. Como se ela fosse vaga, essencialmente ambígua ou mesmo contraditória e sua preservação literal fosse, por isso mesmo, incompatível com todo e qualquer empreendimento filosófico. Como se ela em nada pudesse servir à filosofia, antes de ser filosoficamente “interpretada” e explicada. Como se o discurso comum que a exprime fosse filosoficamente opaco, enquanto a filosofia não se interrogar sobre o seu sentido para desvendá-lo em resposta. Apenas sob essa ótica, a renúncia aos discursos em conflito, uma vez descoberta sua impotência para dirimi-lo, se pôde configurar como uma recusa da filosofia. Não lhe tendo restado mais que a visão comum e não-filosófica do Mundo, a que ele firmemente se apegou, nosso homem comum se crera, por isso mesmo, proibido de filosofar.

Agora, porém, lhe ocorre que nada justifica assim brindar as filosofias do conflito com o monopólio e o privilégio do uso adequado e correto do nome “filosofia”. [13] Nada justifica que se faça a essa palavra uma tal injustiça. Ele dá-se conta de que aquela sua condição de espectador do conflito das filosofias lhe assegurava, em verdade, uma posição privilegiada que, cegado pelos feitiços do Lógos prepotente, ele não soubera ou pudera aproveitar. Vivendo a aporia do conflito, perdera-se nela, tendo no entanto, ao alcance das mãos, a chave que lhe permitira desfazê-la. Mas o Lógos o havia manietado. Enquanto não aderia a nenhuma das filosofias em disputa, ele era apenas um homem comum em busca de uma filosofia, um homem situado no espaço da vida comum e que não tinha como seu senão o discurso comum dos homens. Mas a magia sedutora dos discursos filosóficos o tornara incapaz de valorizar filosoficamente sua própria condição, de olhá-la com olhos simples de filosofia. E as filosofias marcavam seu discurso de homem comum com o estigma da ingenuidade.

Eis que ele se decide, então, a promover filosoficamente a visão comum do Mundo, convertendo-a em base firme para uma visão filosófica do Mundo. Ele lhe confere a cidadania filosófica, dispõe-se a endossar suas implicações e pressupostos. Assume reflexivamente e em nível teórico o que, na visão do homem comum, era o produto de uma atividade quase sempre espontânea. Assume, decidida e confessadamente, as certezas e evidências da visão comum como certezas e evidências filosoficamente legítimas. Aceita, como real, do ponto de vista de uma semântica filosófica, isto é, no sentido metafísico e forte do termo, o que se impõe como real à visão comum. Aceita as verdades da visão comum como verdades filosóficas. E assim outorga às verdades “práticas” e às certezas “morais” da visão comum o estatuto de verdades e certezas teóricas. [14] Ele o faz com a mesma segurança tranquila, com a mesma convicção e firmeza com que o homem comum sustenta a visão comum do Mundo. O novo filósofo assume essa visão comum como um conhecimento, reconhece-a como um saber. Ele a leva filosoficamente a sério, acolhendo suas pretensões como filosoficamente válidas. Ele acolhe a “ingenuidade” na filosofia.

Essa filosofia vê o Mundo, então, como presença inexorável que se manifesta e impõe irrecusavelmente. Presença imediata e absoluta, que se não pode deixar de aceitar e reconhecer, irremediavelmente manifesta. Fato bruto e primeiro, objetividade plena, que se dá imediatamente, numa evidência absoluta e primeira, imune a qualquer dúvida. Realidade que é em si e por si, cuja autonomia radical prescinde absolutamente de nosso conhecimento e de nosso discurso. E o Mundo ou Realidade que assim se assume, essa filosofia não o assume como um grande X desconhecido, qual uma incógnita misteriosa sobre que se pronunciaria abstratamente e cuja natureza e conteúdo lhe coubesse eventualmente tentar investigar e desvendar. Ela não se limitará a repetir obsessivamente que há o Mundo, [15] ela assume o que o Mundo é, o que há no mundo. Ela assume o Mundo em carne e osso… Porque ela assume o Mundo como a totalidade dos fatos e coisas em que os homens estamos mergulhados e que se abre diante de nós a partir da esfera familiar dos fatos e objetos ordinários que mais de perto nos cercam. Assume-se a realidade plena e absoluta dos aspectos e modos do Mundo que a visão comum recobre, em suas linhas gerais. Esse Mundo assumido contém, então, todos os ingredientes fundamentais de nossa vida cotidiana, agora filosoficamente promovidos. Porque essa filosofia entende que nossa experiência cotidiana, no que ela tem de mais básico, é experiência do “realmente real”. [16]

Ela vê o Mundo, ao mesmo tempo, como o objeto dessa experiência imediata e como o seu suporte e fundamento manifesto. Realidade inexorável que nos contém, engloba e transcende. Realidade rica e complexa, de que nosso Mundo humano é apenas um aspecto. E o homem se assume plenamente, portanto, como um ser no Mundo e do Mundo, numa autorrevelação que vai de par com a própria manifestação do Mundo. O homem se dá a si próprio no mesmo movimento pelo qual apreende o Mundo. E sua mesma visão do Mundo e seu mesmo discurso que a exprime e diz o Mundo lhe são, ao mesmo tempo, presenteados. E essa visão do Mundo se lhe dá como fundamentalmente semelhante às visões que os outros homens têm do mundo, configurando uma visão comum. Ele se apreende, assim, como homem comum e como portador de uma visão comum do Mundo. E o que o homem comum conhece, a filosofia não desconhecerá. Como o homem comum, a filosofia olha e vê o que está diante de nós. O saber assumido consiste, pois, em bem mais de que na simples recusa da autoridade ilimitada do princípio de razão suficiente. [17]

Assumindo o saber e conhecimento da visão comum como tais, a filosofia se põe como saber e conhecimento. Em verdade, porque o acolhe como um conhecimento anterior e originário, ela efetua um reconhecimento. Ela vem assumir e refletir sobre conhecimentos que sempre foram nossos, ela é aceitação reflexionante e crítica do que já se tinha e sabia. Reconheço alguém quando me dou conta de que é quem, de algum modo, eu já conhecia. A nova filosofia se propõe como uma filosofia do reconhecimento do Mundo. Nela, a aceitação do Mundo não decorre de um eventual progresso no discurso filosófico, mas é o seu ponto de partida. Ancorada na certeza e evidência desse saber originário, a filosofia do reconhecimento aspira somente a deixar o mundo dizer-se em seu discurso. Ela quer ser apenas o instrumento humano do autorreconhecimento do Mundo.
Sempre conforme à visão comum, a nova filosofia proclama, pelo simples fato de assumi-la, o primado absoluto do Mundo sobre o saber, do Objeto sobre o sujeito, do Conhecido sobre o conhecimento. Em suma, o primado do Mundo sobre o discurso comum, que tem no Mundo o seu referencial necessário e o seu pressuposto permanente. Ela assume o discurso, todo discurso, como um evento do Mundo, como um aspecto do comportamento humano no Mundo. E assim assume a posterioridade absoluta do discurso em relação ao Mundo, a anterioridade correlata do Mundo em relação ao discurso. E entende que o discurso está sempre a dizer o Mundo. Reconhece sua precariedade e contingência, sua capacidade de acertar e errar, seu poder e sua falibilidade. Mas ela o toma como basicamente veraz e assume a confiança espontânea que o homem comum nele deposita. Mas assume, também, que nosso discurso não faz falta ao Mundo.

Ao assumir teoricamente a visão comum do Mundo, a filosofia assume ipso facto sua expressão no discurso humano e comum como fundamentalmente adequada. Assume necessariamente essa porção do discurso como verdadeira e transparente, literalmente significativa. Acolhe-a como um discurso cuja boa compreensão dispensa totalmente qualquer esforço de interpretação e busca de sentido. Tal como, na visão comum do mundo, se vê o seu próprio discurso. O Mundo, para a filosofia do reconhecimento, é presença imediata que torna ocioso, torna em verdade absurdo qualquer projeto de legitimação outra do discurso que a exprime. Presença impositiva, cujo reconhecimento prescinde de qualquer outra justificação ou fundamentação. Existência primeira e absoluta, que não tem de ser interpretada e cuja facticidade bruta faz mesmo da busca de sua interpretação um empreendimento sem sentido. Significação transparente que torna, por isso mesmo, obscura e incompreensível a pergunta pela significação. [18]

Por outro lado, reconhecendo o discurso como um evento do Mundo, como um aspecto humano do Mundo, a filosofia vê sob o mesmo prisma quanto nele se constrói e propõe. Teorias e doutrinas, ciências e filosofias não são, para ela, senão discursos humanos, eventos do Mundo humano, facetas do comportamento dos homens. Expressões contingentes da Opinião (dóxa), pontos de vista humanos sobre o Mundo. Práticas opinativas mais ou menos felizes, que se devem mensurar pelo Mundo: a Opinião ora é verdadeira, ora é falsa… Ao Mundo elas dizem sempre respeito, o Mundo é seu objeto único e permanente, explícito ou implícito. Assim, em conformidade com a visão comum, a filosofia do reconhecimento humaniza e mundaniza todo saber e conhecimento, toda pretensão a saber e conhecer.

Em particular, ela humaniza e mundaniza todas as filosofias, sem excluir-se obviamente a si própria. Ela assume, com a visão comum, que tudo que possam dizer os discursos filosóficos é mera opinião do homem, ainda quando opinião verdadeira. Opinião de um homem real num Mundo que está aí, o que quer que dele digam as filosofias. De um homem real que vive, antes de filosofar. No princípio, o Verbo não era… As filosofias são apenas produtos da prática teórica dos homens, fatos da vida humana, em que pese à sua excelsa dignidade de saber mais alto. Elas estão irremediavelmente situadas. O conflito indecidível em que os discursos filosóficos incansavelmente se empenham se trava, de fato, no espaço e no tempo da vida comum. Mera disputa entre opiniões de homens, que tem sempre, como pano de fundo, o velho Mundo. Mas a sorte do Mundo não se joga nesse conflito. Assim vê as filosofias a visão comum dos homens, assim as vê também a nova filosofia.

Eis aí, pois, algumas indicações sobre o que se pode entender por promoção filosófica da visão comum do Mundo. Ela significa assumir na filosofia o Mundo como ele é, como ele se dá à nossa experiência imediata, anteriormente a qualquer filosofia. O filósofo assume, enquanto filósofo, o que não pode deixar de aceitar e de reconhecer, enquanto homem comum. Acolhe, em sua filosofia, a visão comum do Mundo que se lhe impõe, quando não faz filosofia. A visão comum do Mundo que se impôs ao espectador do conflito das filosofias, quando este a elas renunciou. E que “resistiu”, pois, a essa renúncia. A filosofia vem assumir o que sempre se tem, mesmo quando dela se desiste.

7.

Ao descrever a renúncia às filosofias do philósophos que se deixara vencer pela indecidibilidade de seu conflito, falamos várias vezes de retorno à vida comum, de reingresso, de volta. Ao ver-nos discorrer sobre esta redescoberta do amplo espaço da vida comum, um filósofo, leitor intrigado, veio maliciosamente perguntar-nos onde se estava antes. [19] E, vendo-nos tematizar a visão comum e nela insistir, vendo-nos reafirmar suas verdades comuns, ele nos perguntava perplexo: “Mas quem jamais disse o contrário?” [20] Tanto mais que todos reconhecemos que os próprios filósofos, enquanto homens comuns, evidentemente compartilham da visão comum. Eles nunca pretenderam negar que Wittgenstein usasse uma cueca sob a calça. [21]

Ora, tudo indica que se tratava de uma volta ao lugar de onde nunca se saíra, de um reencontro do espaço onde sempre se vivera. Pois não se tinha, por certo, deixado a vida nem se abandonara a condição humana: o philósophos nunca quisera ou pudera renunciar à vida cotidiana e comum. E tudo parecia indicar, também, que ninguém “disse o contrário”, que nenhum filósofo reconhecido jamais ousara proferir tão estranho discurso. Por que, então, insistir no trivial, repetir o óbvio? Por que lembrar o que ninguém esquece, reafirmar aquilo de que ninguém duvida? Porque o Mundo da visão comum, todos o reconhecem e ninguém dele duvida. Se ninguém nega a experiência comum, de que pode servir enumerar truísmos? [2] Dá-se a impressão de que se combate uma metafísica delirante, que recusaria a existência do Mundo da experiência cotidiana e a vida comum. Mas, se ela não corresponde a nenhuma filosofia histórica, [23] estaríamos perdendo nosso tempo a convocar banalidades para guerrear fantasmas.

O que tínhamos em mente, entretanto, era a tradicional e frequente desqualificação filosófica da vida comum, do homem comum, do discurso comum, do saber comum, tal como ocorre em muita filosofia. Desqualificação falaciosa que quer converter a experiência comum do Mundo, por exemplo, em “fé perceptiva”, a visão comum do Mundo em “realismo ingênuo”, toda a perspectiva da atitude espontânea sobre o Mundo em mera ilustração do simplismo e ingenuidade filosófica. As certezas do homem comum, as verdades comuns da experiência cotidiana, os filósofos vivem-nas, por certo, e não as negam, enquanto homens. Mas, enquanto filósofos, não as assumem.

Desprezando-as teoricamente, nesse sentido ignoram-nas em suas filosofias, ignoram-nas enquanto verdades e enquanto certezas. Nesse sentido em que as desqualificam, pode-se dizer que as recusam. Desqualificação teórica, recusa filosófica, empreendidas em nome da racionalidade que postulam para a filosofia. Assim é que boa parte das filosofias opta por esquecer “metodologicamente” a visão comum do Mundo, recusando-se a integrá-la ao seu saber racional e teórico. Não podendo furtar-se, enquanto homens, à experiência do Mundo, não o reconhecem como filósofos. O Mundo não é, para eles, o universo reconhecido de seus discursos.

Repugna a tais filósofos integrar a prática cotidiana e a experiência da vida comum a suas filosofias. Desconsiderando filosoficamente as verdades cotidianas, o bom senso, o senso comum, instauram de fato o dualismo do prático e do teórico, da vida e da razão filosófica. Instauram, consciente e propositadamente, o divórcio entre o homem comum que são e o filósofo que querem ser. Não querendo assumir suas filosofias como meras práticas humanas no Mundo reconhecido, empenham-se em tentar esquecê-lo, obscurecê-lo, “pô-lo entre parênteses” no interior de seus projetos teóricos.

Tais projetos consubstanciam, assim, uma tentativa de criar um espaço próprio e privativo para a filosofia fora do Mundo que o filósofo conhece, enquanto homem comum. A concepção desse espaço extramundano [24] é o fruto necessário do primado concedido à razão sobre o Mundo. E o resultado imediato de a filosofia reivindicar para si uma liberdade absoluta e um desprendimento total em relação ao Mundo. Como se o pleno desabrochar da racionalidade exigisse um total distanciamento em relação ao Mundo, um distanciamento teórico sui generis que, se não se exige explicitamente, implicitamente ao menos sempre se postula. Somente a constituição desse espaço extramundano permitiria o exercício do olhar crítico do filósofo, somente a existência de tão privilegiado mirante ensejaria à filosofia debruçar-se sobre seu Objeto, reconhecê-lo e investigá-lo, ou mesmo instaurá-lo. E o relacionamento da filosofia com o Objeto se daria, portanto, fora do Mundo.

Em tais filosofias, na melhor das hipóteses, o Mundo é apenas o ponto de partida que se vai deixando para trás, ou o porto de embarque que se perde logo de vista, na medida em que o discurso filosófico vai tomando forma e a viagem filosófica se processa. Procuram-se formas de expressão, métodos, critérios; buscam-se certezas, verdades, intuições; tudo se empreende, menos recorrer ao que lá atrás se deixou e se desqualifica. Se se utilizam as verdades comuns, é a contragosto e sempre como se fora provisório. Qual verdade em trânsito, sem direitos a um visa de permanência no discurso da filosofia. Verdades cujos préstimos se tolera aproveitar como que acidentalmente, mas a que se recusa conferir a cidadania filosófica. Associa-se-lhes, no máximo, uma certeza “moral”.

É natural, então, em consequência desse distanciamento do Mundo forjado em nível da razão filosofante, que se cave um abismo entre o lógos da filosofia e o discurso do homem comum. E muitos filósofos de fato opõem, quase sempre muito explicitamente, ao discurso comum o discurso filosófico. Qualificam o discurso comum de vago, de incerto, de obscuro, quando não de contraditório e inconsistente. Isto é, desqualificam-no. Recusam-lhe qualquer transparência, qualquer significatividade clara e imediata que se pudesse, sem mais, filosoficamente assumir. Procedem como se toda e qualquer porção do discurso comum exigisse sempre uma análise e uma interpretação filosófica, para que se lhe possa desvendar a significação oculta. A busca da significação e a construção da interpretação tornam-se tarefas primeiras da filosofia. E sempre de má vontade que os filósofos se veem obrigados a mover-se na esfera do discurso comum e a dele servir-se. Pagam-lhe o devido tributo, mas sempre buscando escapar e, em não escapando, fingem tê-lo abandonado, de corpo e alma empenhados em construir um reino verbal à parte para as suas construções racionais. Comprometem-se a conformar um discurso claro e luminoso, que não querem contaminado pelo discurso ordinário. E um só e o mesmo o movimento que pretensamente instaura o espaço extramundano da filosofia e que constitui o seu discurso alegadamente específico, rigoroso e competente. E a filosofia assim adentra o reino da Linguagem.

A filosofia terá eventualmente por Objeto — eventualmente, mas não necessariamente — um aspecto ou conjunto de aspectos do Mundo, eventualmente o próprio Mundo. Assim, por exemplo, a matéria, a vida, o homem, a linguagem, a história, o próprio Mundo em sua totalidade, são, por certo, os objetos privilegiados de muita filosofia. Mas considerados supostamente do exterior, para serem, por assim dizer, recriados, reconstruídos, instaurados, postos em sua mesma objetividade pelo lógos filosófico. Ou, pelo menos, tal é a pretensão que este último alimenta.

Em sua hýbris sem peias, a filosofia, que se concede aquele pretenso distanciamento crítico e que não assume nem reconhece o Mundo, com isso se condena o tudo problematizar. O filósofo parece esquecer-se de que o projeto originário da filosofia era o de compreender melhor e bem esse Mundo de nossa experiência cotidiana. Ele se esquece de que os homens se puseram a filosofar, em última análise, apenas para compreender melhor seu dia-a-dia, para enriquecer e articular melhor sua visão comum do Mundo. Procede-se, então, ao questionamento radical e absoluto de todo o conteúdo dessa visão comum, convertendo-se o Mundo num grande X desconhecido. Problematizam-se as certezas todas e as evidências mais triviais. O Eu e o Outro, as outras mentes e a existência dos mesmos objetos físicos ordinários. O pensamento e a linguagem, as noções de percepção, de existência, de verdade, de conhecimento. A capacidade referencial e a significatividade do discurso, a própria lógica e todo o saber.

Problematiza-se o Mundo em sua totalidade, a própria existência do Mundo exterior. Já se terá refletido suficientemente sobre quão estranha — e sintomática — é esta expressão: “mundo exterior?” [25] O Mundo transforma-se num problema a ser resolvido, sua aceitação e reconhecimento numa mera crença a ser julgada. Nossa certeza quanto ao mundo exterior se apelida, com alguma condescendência, de certeza prática ou de certeza moral. Vive-se a extravagante aventura de projetar-se a razão para fora do Mundo, nas asas da imaginação filosófica, para eventualmente tentar a ele voltar no discurso da filosofia. Ou para decidir da impossibilidade do regresso. Na melhor das hipóteses, que nem sempre ocorre, parte-se em busca de uma recuperação filosófica do Mundo, para um esforço de legitimação filosófica da aceitação de sua existência. Empreende-se a grande busca do fundamento último, concebem-se os estranhos projetos de fundamentação. [26] Tenta-se, num certo sentido, a mágica da recriação, como se o Mundo se pudesse extrair de dentro do discurso, qual o coelho se tira da cartola do artista.

Eis o grande desvio da razão libertina, quando ela se comete a tentar engendrar a Realidade, sob o pretexto de salvá-la. Quando, divinizando o Lógos, ela se propõe como editora do Mundo. Em verdade, ela perde o Mundo, porque o retorno que eventualmente arrisque não será mais que artifício verbal. E ela se perde para o Mundo, porque recusou ser apenas um saber do Mundo. Dele libertada, a imaginação filosófica se entrega prazerosa à exploração das riquezas inesgotáveis da linguagem humana, multiplicando filosofias. E assistimos, assim, àquela guerra sem fim entre os universos filosóficos, num espaço de ficção. A ave de Minerva alça voo ao cair da tarde. Essa imagem animal foi infelizmente, parece, bem escolhida. Ela retrata bem a aventura do Lógos.
Moore lembrava o fato estranho de filósofos terem sido capazes de sustentar sinceramente, como parte de seus credos filosóficos, proposições inconsistentes com o que sabiam ser verdadeiro. [27] O paradoxo não oferece maior dificuldade. É que é grande o poder da linguagem e o Lógos é um grande Senhor. [28] Por ele enfeitiçado, o espírito humano é levado a acreditar que quanto ocorre com as palavras, assim também se passa com as coisas. [29] Aristóteles parece ter-nos prevenido em vão contra os desvarios do discurso.

8.

Há um sentido bastante preciso, portanto, no qual se pode falar de uma desqualificação filosófica da visão comum do Mundo, de uma recusa do Mundo pelas filosofias. Chamo de idealista toda postura filosófica que empreende essa desqualificação, que efetua uma tal recusa, mercê da primazia concedida às palavras sobre as coisas, à razão sobre o Real. [30] O idealismo resume, assim, o delírio da razão libertina, a sua ilusão essencial, a sua hýbris mais perversa. Em outras palavras, o idealismo é a recusa de integrar a visão comum do Mundo ao discurso filosófico, como componente fundamental e irrecusável. O que leva ao fechamento da filosofia sobre seu próprio discurso, que ela hipostasia e no qual se instala, tendo posto o Mundo entre parênteses. É a problematização filosófica do Mundo. Ele implica sempre a postulação explícita ou implícita daquele espaço extramundano para a filosofia, a que acima nos referimos. Implica sempre a decidida recusa de qualquer remissão ao Mundo para a solução de seus problemas.

O idealismo apresenta-se historicamente sob os mais variados matizes. Nem todas as filosofias que desqualificam a visão comum do Mundo o fazem de igual maneira, havendo gradações sem fim no distanciamento teórico do Mundo que elas se permitem. O espaço de suas construções teóricas se acopla mais ou menos mal, segundo diferentes arranjos que variam muito de uma para outra, ao da vida cotidiana que dimensiona nossa experiência do Mundo. A sua alienação em relação ao Mundo não se dá sempre sob a mesma forma ou em igual amplitude. Algumas vezes, depara-se com a desqualificação aberta e franca da visão e do discurso comuns, no mais das vezes procede-se com muito mais sutileza. Em muitos casos, o temor da alienação proíbe ao filósofo uma consciência clara das implicações e pressupostos de sua mesma postura. Donde o recurso a uma sofisticada autodissimulação e a recusa tácita de levar a cabo uma autoanálise mais profunda. Em verdade, somente uma análise cuidadosa dos discursos filosóficos permitirá tornar manifesto, em cada caso, seu maior ou menor grau de comprometimento com a postura idealista.

Torna-se, pois, evidente que a riqueza e complexidade da produção filosófica torna impraticável qualquer tentativa de dar conta, mediante uma descrição esquemática geral, das variadas formas históricas do idealismo. Se não empreendemos o exame particular e minucioso das doutrinas caso por caso, temos de ater-nos a indicações gerais e forçosamente menos precisas sobre o denominador comum que as aproxima e aparenta, enquanto variante diversificadas de uma mesma postura básica. Assim, nem tudo quanto acima dissemos sobre o idealismo se aplica adequadamente, ou mesmo analogamente, a todas elas. Mas nem por isso aquela descrição geral é menos válida, na medida em que um certo esquecimento teórico do Mundo configura o seu lote comum. A alienação que denunciamos permanece de longe o que há de melhor repartido entre as filosofias. Porque o bom senso é, por certo, a coisa do Mundo melhor partilhada, filósofos à parte…

Parece-me ficar claro, como se responderá àquela pergunta perplexa do leitor-filósofo que estranhou nossa demorada insistência na visão comum do Mundo: “mas quem jamais disse o contrário?”. Respondo-lhe que todas as filosofias da recusa do Mundo, todas as filosofias que desqualificam a visão comum do Mundo, num certo sentido que acima precisei, “dizem o contrário”. De algum modo elas “dizem o contrário”, na medida em que se recusam a dizer o Mundo. O idealismo não diz o Mundo, ele “diz o contrário”. A filosofia moderna, de um modo geral, tem sempre “dito o contrário”. Desta ou daquela maneira, sob este ou aquele aspecto, numa forma mais ou menos explícita, com um grau maior ou menor de consciência. Pois, no sentido em que acima o definimos, o idealismo tem sido, de fato, o paradigma oculto, mas onipresente, de toda a modernidade. [31]
É certo que boa parte dos filósofos modernos ou contemporâneos que tenho em mente recusariam indignados o epíteto de idealista. Muitos deles fazem mesmo profissão de fé anti-idealista. Mas creio ter deixado bem claro o sentido em que uso a expressão. Eles se movem no interior do universo espiritual do idealismo, eles consomem sua energia — e a de seus leitores — na tentativa de resolver os problemas e quebra-cabeças que o idealismo inspirou. E que somente adquirem sentido dentro do projeto idealista, se ele se aceita como legítimo. Projeto que de tal modo impregna — ou infesta — o mundo filosófico, que as questões pertinentes à sua problemática interna e própria acabam por transvestir-se em problemas espontâneos e naturais da reflexão filosófica.

Sob esse prisma, portanto, não hesitarei em chamar de idealistas doutrinas quanto ao mais tão diferentes como, por exemplo, o empirismo inglês, a filosofia crítica, o pragmatismo americano ou o positivismo lógico. Este último, por exemplo, quando rejeita como “metafísicas” e desprovidas de significado as proposições sobre o mundo exterior que se não podem verificar empiricamente segundo os padrões e critérios estritos de verificabilidade que ele define. Também chamarei de idealistas bom número das filosofias contemporâneas da linguagem, quando julgam poder prescindir do reconhecimento filosófico do Mundo para tematizar e compreender a linguagem filosoficamente. Direi o mesmo de certas correntes da filosofia marxista de nossos dias que se comprazem paradoxalmente em abordar temas marxistas nos moldes da problemática idealista e a partir de seus pressupostos, infiéis por certo ao espírito e à letra da obra adulta de Marx. E não é senão muito natural que tudo isso ocorra, já que a atitude idealista define a postura básica e constitui a dimensão mais essencial da racionalidade filosófica moderna.

Essa postura básica, a filosofia moderna deve-a sabidamente ao cartesianismo, que constitui a fonte de inspiração profunda de seu idealismo visceral. E, sem sombra de dúvida, pode-se falar de um cartesianismo profundo do pensamento ocidental. Foi a genialidade de Descartes que deu nascimento e forma consistente ao grande projeto da contestação filosófica do reconhecimento do Mundo. O Cogito pode, a justo título, ser tomado como o símbolo historicamente privilegiado dessa extraordinária empresa da alienação da razão humana. Inventando a dúvida hiperbólica, a filosofia do Cogito abriu decididamente o caminho pelo qual as filosofias posteriores não cessaram de avançar, seguindo as suas pegadas. Pouco importa que elas não retomem temas ou soluções cartesianas, ou que venham mesmo a rejeitar explicitamente o Cogito. E sempre o espírito profundo do cartesianismo que as anima, é dele, em verdade, que elas continuamente se alimentam. Seu estilo e sua postura fundamental as fazem herdeiras, diretas ou indiretas, da grande tradição cartesiana. Deve-se à filosofia do Cogito a perversão secular da razão ocidental.

A filosofia cristã, ao tematizar o dogma bíblico da criação, exigindo uma causalidade e explicação extramundana para o Mundo em sua totalidade, subordinando a existência do Mundo — e sua permanência nela — à vontade inteligente de um Deus criador, iniciara de algum modo o processo de desestabilização filosófica do Mundo, cujo reconhecimento, no entanto, ela assumia. Com o pensamento cristão, a mesma matéria do Mundo deixou de bastar-se filosoficamente a si mesma. Sob esse prisma, o cristianismo filosófico preparou o terreno para a filosofia do Cogito, para tanto apropriando e reinterpretando, à luz da Revelação, as categorias da filosofia clássica grega, que também se aplicavam, por certo, ao Mundo filosoficamente reconhecido (isso era verdade também para o platonismo, embora nele tenha lugar uma certa desqualificação ontológica do Mundo da experiência cotidiana). O Cartesianismo, então, recorrendo ao arsenal do ceticismo grego, que a filosofia da Renascença repusera em moda, e exacerbando a dúvida cética até o limite extremo, operou a grande inversão idealista, pondo filosoficamente em xeque o mesmo reconhecimento do Mundo. E a razão filosófica passou a precisar da bondade divina até mesmo para assumir a existência do Mundo. O cartesianismo fez, assim, passar ao ato potencialidades de algum modo inscritas no discurso filosófico cristão sobre a Criação. Ele proclamou a independência da razão e de seu discurso em relação ao Mundo, conferindo ao lógos humano o lugar divino da exterioridade. Nesse sentido, ele divinizou o discurso dos homens. Ou humanizou o Verbo de Deus… E o reconhecimento do Mundo se converteu expressamente, pela vez primeira, num problema filosófico.

A filosofia posterior veio a rejeitar os préstimos da bondade divina e acabou de perder o Mundo… Por várias vezes, ela tenta recuperá-lo, reinstaurá-lo, recriá-lo em seus discursos. Creio lícito dizer que, nesse empreendimento, ela de fato se erige em sucedânea laica da teologia da criação. Ela se faz o instrumento da vontade do homem de ser Deus. A filosofia do Cogito cavou um abismo entre a razão e o Mundo e a filosofia posterior se encarregou de alargá-lo e aprofundá-lo. A história do pensamento pós-cartesiano é a estória de como esse abismo se alargou e aprofundou continuamente. A oposição histórica da razão ao Mundo veio a resultar na filosofia contemporânea da linguagem. E o grande confronto filosófico de nossos dias se dá entre o Mundo e a linguagem, que tomou o lugar do Cogito. O linguisticismo da filosofia contemporânea é o último triunfo de Descartes.

9.

Creio poder, agora, responder também aquela pergunta intrigada do leitor que estranhou falássemos do retorno do philósophos à sua condição de homem comum, de seu reencontro do espaço da vida comum, quando desesperou de encontrar uma solução para o conflito das filosofias e decidiu renunciar a elas: o leitor malicioso nos perguntou onde se estava antes. Respondo-lhe que, antes, arrastado para o turbilhão “extramundano” dos universos filosóficos em conflito, o philósophos vivia um distanciamento malsão entre a razão e a vida, entre o Mundo dos homens e os universos dos discursos filosóficos. O dualismo esquizofrênico do filósofo que ele aspirava a ser e do homem que ele era mas com o qual a filosofia não permitia que ele se identificasse integralmente. A metáfora da volta à vida comum se entende bem, quando se considera o processo de desqualificação filosófica da visão comum do Mundo, quando se reflete sobre o empreendimento secular de alienação da razão em relação à Vida. Trata-se, por certo, de uma volta ao lugar de onde nunca se saíra, a não ser nas asas da imaginação filosófica…

O philósophos fora induzido ao distanciamento “teórico” em relação ao Mundo, ao esquecimento “metodológico” da visão comum do Mundo, vivera a extravagante experiência do “espaço extramundano” que as filosofias pretenderam para si forjar. Ele se enredara na problematização filosófica do Mundo, nas tentativas filosóficas de “editar” o Real, ele se deixara seduzir pela tentação da exterioridade. Empenhado na busca de uma definição filosófica que se pudesse efetivamente validar, ele vivera a dolorosa experiência intelectual da indecidibilidade essencial do conflito das filosofias, da inocuidade dos projetos de autolegitimação de seus discursos.

A renúncia à filosofia e a opção pelo silêncio da não-filosofia representaram para ele, ao mesmo tempo, o abandono dos jogos da linguagem filosófica e a recusa daquele espaço de ficção no qual as filosofias travam obstinadamente o seu eterno debate. Significaram o abandono do estranho privilégio de ser cidadão de dois mundos. Foi como se, deixando atrás a noite escura da fabulação, ele pudesse agora imergir de corpo e alma na luz que ilumina o dia dos homens. Para reviver com justificada alegria a experiência humana comum do Mundo em sua plenitude, sem mais a estranha tentação de pôr o Mundo entre parênteses, como se fosse uma sentença. Longe da companhia dos que se recusaram a aprender com o Mundo. Por tudo isso, não creio descabida a metáfora da volta à vida comum.

10.

Mas voltemos à filosofia que reconhece o Mundo. Algum filósofo virá dizer-nos que a consulta da filosofia ao saber da visão comum deixa “as coisas como estão” e nos deixa, a nós, no grau zero da filosofia. [32] Responder-lhe-ei que a filosofia do reconhecimento “deixa” confessadamente as coisas como estão, pois as reconhece como coisas dotadas de plena realidade e objetividade. Não alimenta a pretensão de delas fazer tabula rasa, pois entende que “não pode com elas”. Mas por outro lado, ao reconhecer as coisas e processos do Mundo, a filosofia se confere um ponto privilegiado de partida. Esse ponto de partida não é um vácuo de saber, mas uma plenitude de manifestação e presença. Em verdade, não se trata de um ponto, mas de uma base sólida de partida. A promoção filosófica da visão comum é, precisamente, a sua transmudação em base para uma visão filosófica do Mundo. Reconhecendo o Mundo, a filosofia se dá a si mesma essa base extraordinariamente rica sobre a qual se erguerá o edifício filosófico. Fundamento forte, alicerce sólido plantado em terra firme. O Mundo reconhecido é o fundamento que a filosofia exibe e descreve, para sobre ele construir-se, não o tendo construído. Tomando-o como necessário Objeto, a filosofia vê nele, anteriormente, o seu Sujeito suporte e raiz, fonte e alimento. O mundo reconhecido é o pressuposto explicitado do discurso filosófico, o referencial imediato que o norteará e lhe dará sentido. Dando às palavras de Wittgenstein um sentido por certo diferente daquele que o filósofo lhes atribuía, direi também que em filosofia, “conhecemos, no ponto de partida, todos os fatos que precisamos conhecer”. [33] Tudo isso leva-me justificadamente a dizer que não existe o grau zero da filosofia.

Mas não é verdade que toda a filosofia está ainda por fazer? Sim, num certo sentido. Mas a filosofia se pode agora fazer, porque ela dispõe de um fundamento firme. Não tem que procurar por certezas e evidências primeiras, porque as tem em seu ponto de partida. Não perseguirá no ar o que tem como chão: o solo não se inventa, mas sobre ele se caminha. Não sairá à busca de critérios para legitimar o seu discurso, na medida em que este imediatamente se legitima, enquanto expressão do reconhecimento do Mundo. Pois vimos acima como, ao assumir teoricamente a visão comum do mundo, a filosofia assume ipso facto sua expressão no discurso comum como fundamentalmente adequada, assume ipso facto a significatividade imediata e transparente deste discurso que ela faz seu. Não mais forjando o extravagante projeto de procurar alhures o chão que já pisa, a filosofia partirá da visão assumida do Mundo para explicitá-la sempre mais, articulá-la sempre melhor, constantemente aperfeiçoá-la e nesse sentido enriquecê-la, tornando-a mais sistemática, autoconsciente e crítica. Explicitação, articulação, aperfeiçoamento, sistematização e crítica que a preservarão, no entanto, de qualquer desqualificação, clara ou dissimulada. A partir daí, a filosofia procurará definir suas tarefas e fixar seus programas, formular seus problemas e propor suas soluções. O mundo reconhecido, que não é um problema, será o referencial permanente para a formulação de problemas e a proposição de soluções. Alfa e ômega da filosofia, origem e fim não questionáveis dos questionamentos filosóficos. E a filosofia remeterá constantemente ao Mundo para orientar, aperfeiçoar ou mesmo corrigir suas formulações.

O caminhar da filosofia tem agora parâmetros bem fixos que o balizam. Dentro deles, poderão abordar-se os problemas históricos e clássicos da filosofia, seja para orientar sua solução, seja para desmascarar eventualmente sua falsa problematicidade. Mas se caminhará sempre por terra conhecida. O reconhecimento do Mundo terá sido apenas o ponto de partida. [34] Mas ele é o único ponto de partida possível para uma sã filosofia.

E se procurará construir, assim, o discurso crítico da filosofia. A razão filosófica encontrará sua força e grandeza nessa submissão ao Mundo que ela reconhece como anterior e transcendente a ela, maior e mais poderoso que ela. Relativa ao Mundo, a filosofia sabe que o Mundo não lhe é relativo. [35] Ela se constituirá num ato de humildade, como rendição da razão ao Mundo. “Porque a racionalidade da razão se manifesta no reconhecimento de seu lugar próprio, não no culto narcísico de sua divindade imaginária”. [36] E, com isso, se opera um verdadeiro redimensionamento da racionalidade filosófica.

11.

Virão dizer-nos, também, que a promoção filosófica da visão comum do Mundo exprime a esperança de reconstituir-se uma “metafísica natural do espírito humano” [37] Mas é lícito perguntar se cabe realmente falar de uma filosofia natural e espontânea do homem comum. Entendo que, a menos que se queira usar a palavra “filosofia” num sentido extremamente vago e descomprometido, não se deve dizer que a visão comum do Mundo é, em si mesma, de natureza filosófica. O homem comum, em geral, não é filosófico, não faz filosofia. A sua visão comum do Mundo, mesmo quando ele é civilizado e culto, faltam a sistematicidade construída, a sofisticação da análise, o aprofundamento da reflexão crítica que caracterizam costumeiramente os empreendimentos filosóficos. Mas, sobretudo, não nos é permitido esquecer que a filosofia tem uma história e que essa história foi sucessivamente definindo rumos e problemáticas e quadros de referência para a reflexão dita filosófica. Ainda que a rica pluralidade das distintas tendências filosóficas não autorize uma definição inequívoca e aceita do nome “filosofia”, [38] não parece conveniente aplicar-se o termo senão ao produto de uma atividade de reflexão consciente de sua inserção naquela história e capaz de explicitamente determinar-se em relação a ela. Capaz de tematizar crítica e comparativamente problemas e soluções, de aproximar semelhanças e opor diferenças, posicionando-se em relação às outras correntes de pensamento. Aliás, é sabidamente assim que procederam e procedem as várias doutrinas que se propõem — e que são reconhecidas — como filosofias. Essas características essenciais faltam, obviamente, à visão comum do Mundo. Não vejo, então, como se possa, num sentido um pouco mais rigoroso, falar de uma “metafísica natural do espírito humano” ou de uma “filosofia espontânea do homem comum”.

Mas se é verdade que a visão comum do Mundo não é, em si mesma, filosófica; se ela não constitui uma reflexão sobre o ser ou sobre o conhecimento, sobre o discurso ou sobre a verdade; se ela ignora, em suma, as questões tradicionais da filosofia, não é menos verdade, contrariamente ao que alguns também sustentam, que ela contém, por assim dizer, uma potencialidade filosófica específica, ela abriga em si o germe de uma filosofia. E ela se pode, sem maior esforço, prolongar nessa filosofia, que lhe permanecerá extraordinariamente fiel. A filosofia que reconhece e assume o Mundo, promovendo a visão comum, se propôs exatamente nesse sentido. Eis porque me parece válido dizer que, se optamos por não opor-lhe resistência filosófica, a visão comum do Mundo “força” uma filosofia. [39] Tanto ao expor, páginas acima, de que modo entendia essa promoção filosófica da visão comum, quanto ao demorar-me numa análise sucinta de sua desqualificação pela filosofia que chamei de idealista, penso ter deixado suficientemente manifesto o caráter positivo da filosofia que emerge da orientação que proponho. Positividade essa que exprimiu sob a forma de teses sobre o Mundo, sobre o conhecimento, sobre o discurso, sobre a própria natureza da filosofia. [40]

Essa positividade se contrapõe precisamente, pois, à positividade idealista. A filosofia do reconhecimento não se caracteriza menos pelo seu caráter reativo [41] contra todas as formas da filosofia idealista que por seu conteúdo positivo manifesto. Em verdade, caráter reativo e conteúdo positivo constituem as duas faces de uma mesma moeda. É um só e o mesmo o movimento pelo qual a promoção da visão comum “força” uma filosofia e exclui muita filosofia.

Curiosamente, alguns parecem experimentar uma certa dificuldade em perceber aquele conteúdo filosófico latente na visão comum do Mundo, teimando em atribuir-lhe uma “inocência” filosófica absoluta, uma potencialidade totalmente neutra em relação às diferentes posturas filosóficas, inclusive em relação às idealistas. Entretanto, uma re-leitura mais rigorosa dos grandes textos idealistas e mais atenta a esta questão deveria trazer claramente à luz a incompatibilidade radical e insuperável entre, de um lado, a visão comum, se literalmente assumida a sério no discurso filosófico, e, de outro lado, grande parte das asserções e a mesma orientação básica que definem a posição idealista. Não é por outra razão que se procede à desqualificação que apontamos, ora efetuando-a explicitamente, ora mascarando-a sob o disfarce de uma “reinterpretação”: buscam-se, então, para a visão comum, significações que ela imediatamente não comporta e propõe-se, das proposições que a exprimem, uma análise cujo sentido é, precisamente, o de torná-las compatíveis com o discurso idealista. Esse procedimento constante das filosofias idealistas testemunha de sua percepção correta daquela incompatibilidade.

Não oporei maior objeção a que se agracie a filosofia do reconhecimento com o velho epíteto de realista. Desde que, com isso, se queira apenas insistir no fato de que essa filosofia reconhece a anterioridade do Real, assumindo a significatividade transparente do discurso que diz imediatamente sua presença reconhecida. Mas rejeitarei firmemente que se trate minha posição de naturalista, quer se designe por esse termo uma forma qualquer de biologismo, [42] quer se pretenda, com seu uso, atribuir à nova filosofia um parentesco qualquer com as ciências da natureza, como é o caso da epistemologia “naturalizada” de Quine. [43] E a recusa do espaço extramundano para as filosofias, se é isso que se entende por naturalismo, [44] não tem de significar a renúncia à metafísica: a filosofia do reconhecimento assenta confessadamente numa metafísica descritiva. [45] Mas, uma vez estabelecido esse ponto, permito-me confessar, em seguida, minha crença sincera de que essa posição filosófica representa, de fato, o triunfo da animalidade sadia da espécie contra os delírios e devaneios da razão filosofante.

A inversão idealista negara o realismo grego e cristão, o novo realismo nega a negação idealista. Mas não se trata de um simples retorno à postura original da filosofia clássica grega, que assumia espontaneamente a visão comum do Mundo e a incorporava serenamente ao discurso filosófico. Após a queda, não se pode mais querer reencontrar a “inocência” original. [46] Mas se pode sempre salvar a filosofia, libertando-a do demônio idealista e recuperando a visão comum do Mundo. O novo realismo tem necessariamente de construir-se contra o idealismo, donde o seu caráter essencialmente reativo. O que explica, também, a sua necessária sofisticação. Não se pode voltar a Aristóteles ignorando Kant ou Descartes.

12.

Ainda uma última lembrança de Sexto Empírico. Ele nos diz [47] que ao filósofo cético sobreveio a mesma experiência que ao pintor Apeles. Deste se contava que pintando um cavalo e desejando representar a escuma do animal, desesperou de consegui-lo e arremessou sobre a pintura a esponja com que costumava limpar seu pincel. Ora, sucedeu que a marca feita pela esponja sobre a pintura produziu a imagem da escuma. Do mesmo modo, o filósofo cético buscava atingir a quietude d’alma (ataraxía), tentando decidir sobre o verdadeiro e o falso, sobre o conflito entre as aparências e as ideias. Descobrindo-se incapaz de uma tal decisão, procedeu à suspensão de seu juízo (epokhé), quando lhe sobreveio inesperadamente, então, a ataraxía que buscara em vão.

Eu direi algo semelhante da filosofia. Quando nos dispomos a filosofar, deparamos com o conflito das filosofias, tornamo-nos seus espectadores e nos deixamos enfeitiçar pelos discursos filosóficos. Buscando uma decisão para o conflito, fazemos a experiência de sua indecidibilidade. Renunciamos, então, ao filosofar e redescobrimos a vida comum. Eis senão quando incidentalmente nos damos conta de que a filosofia buscada nas nuvens esperava, de algum modo, desde sempre por nós, na terra dos homens. Donde promovermos a nossa visão humana e comum do Mundo, conferindo-lhe um estatuto filosófico. A possibilidade de filosofar nos foi assim brindada, depois que renunciamos à filosofia. Deitando fora seus instrumentos, aconteceu-nos recuperá-la. Repetindo, de algum modo, a experiência do pintor Apeles.

É como se houvesse um tempo lógico [48] da instauração filosófica. Descoberta do conflito das filosofias, experiência de sua indecidibilidade, tentação do ceticismo, renúncia à filosofia, redescoberta da vida comum, silêncio da não-filosofia, promoção filosófica da visão comum. Uma sequência ordenada de etapas que não vejo como se pudessem logicamente dispensar. Não teria sido, com efeito, possível começar diretamente pela promoção filosófica da visão comum e pelo reconhecimento filosófico do Mundo. Porque se estaria apenas lançando uma filosofia a mais na arena do conflito. Ora, não se tratava de obter no conflito uma vitória impossível, mas de vencer o conflito, superando-o. Somente nossa renúncia à filosofia pôde consegui-lo. E o silêncio da não-filosofia pôde, então, obscuramente preparar a restauração filosófica. A promoção filosófica da visão comum se faz por sobre o conflito, e a nova filosofia não vai se integrar nele. [49]

Um salto qualitativo verdadeiramente se opera. E a filosofia vence a barreira da linguagem.

Notas

[*] Publicado em Manuscrito III, l, Campinas, 1975; também em Filosofia e epistemologia III, Lisboa, 1981.
1. Cf. Sexto Empírico, Hipotiposes Pirronianas I, 7. Cito o texto conforme a edição da Loeb Classical Library, William Heinemann Ltd., Londres, e Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1955.
2. Cf. ibid. I, 14-15 et passim.
3. Koinòs bíos, cf. ibid. I, 23-24; 237-238.
4. Cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr., “A Filosofia como Discurso Aporético” in Bento Prado Jr., Oswaldo Porchat Pereira e Tércio Sampaio Ferraz, A Filosofia e a Visão Comum do Mundo, Editora Brasiliense, São Paulo, 1981. Nesse trabalho, o autor comenta criticamente meu artigo “O Conflito das Filosofias”. A crítica de Tércio foi-me deveras estimulante e desempenhou um papel importante no desenvolvimento de minhas reflexões.
5. Cf. nesta coletânea, pp. 22-45.
6. Cf. ibid., pp. 34 segs.
7. Cf. ibid., pp. 34 segs.
8. Bento Prado assim pretendeu, cf. Bento Prado Jr., “Por que Rir da Filosofia?”, in Bento Prado Jr., Oswaldo Porchat Pereira, Tércio Sampaio Ferraz, A Filosofia e a Visão Comum do Mundo, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1981, pp. 59-97. Trata-se de um texto de rara elegância e profundidade, no qual o autor procura analisar e criticar, dentro do quadro mais amplo de uma crítica às filosofias do senso comum, as ideias que expus no “Prefácio a uma Filosofia”. O artigo de Bento, do qual essencialmente discordo, obrigou-me, no entanto, a aprofundar algumas de minhas ideias e a desenvolver com mais precisão certos pontos daquele meu trabalho. O presente texto, sob muitos aspectos, é também uma resposta a Bento Prado, ainda que não me tenha sido possível abordar aqui todas as dificuldades que ele formulou.
9. Espero ter ficado claro, nesta exposição, que a ideia do homem comum não é uma simples “ficção operativa, ou seja, um projeto pedagógico”, como quer Bento Prado, cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 90.
10. Cf. “Prefácio”, pp. 39 segs.
11. Cf. ibid., p. 39.
12. Contra Bento, cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 95.
13. Cf. “Prefácio”, p. 40.
14. Bento Prado julgou, entretanto, que eu reputava inacessível a certeza metafísica ou absoluta, substituindo-a por uma certeza meramente moral, cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 95. E entendeu, também, que eu tomava a ideia de verdade exclusivamente no sentido de “certeza moral”, cf. ibid., p. 94. Mas a promoção filosófica da visão comum do Mundo transforma as certezas e verdades comuns em certezas e verdades metafísicas. Apenas não se trata de uma metafísica especulativa, eis toda a diferença.
15. Conforme Bento Prado dá a entender, cf. ibid., p. 79.
16. No Fedro 249c, apresentando a teoria das Ideias sob a forma do mito da reminiscência, Platão nos fala do que a alma viu na grande procissão celeste em que ela acompanhava o passeio de um deus, quando ela olhava de cima tudo que presentemente dizemos ser (eînai) e erguia a cabeça para o alto, em direção ao realmente real (tò òn óntos). Desconhecendo essa dicotomia, a promoção filosófica da visão comum leva-nos a identificar o “realmente real” com o que “presentemente dizemos ser”.
17. Cf. “Por que Rir da Filosofia?” p. 79.
18. Contra Bento Prado, cf. ibid., p. l9. Entretanto, Bento interpreta mal minhas ideias ao atribuir-me a recusa de um estatuto filosófico para a interpretação e a tese de que somente há fatos brutos ou interpretações vazias (cf. p. 94). Porque a filosofia do reconhecimento reconhece, aliás de acordo com a visão comum do Mundo, que o discurso comum também comporta vagueza, ambiguidades e contradições. Ela apenas assume que há um fato bruto primeiro, a presença do Mundo com seu mobiliário de fatos e objetos que se oferecem à experiência imediata e se apreendem na visão comum. É o reconhecimento desse fato bruto que dispensa qualquer hermenêutica. Mas essa mesma facticidade bruta fornece, ao mesmo tempo, a base necessária e sólida que servirá de referencial para a análise e interpretação de outras porções do discurso. Entendo, aliás, que a existência dessa base que dispensa uma hermenêutica é a condição necessária e suficiente para toda hermenêutica possível. Por outro lado, não me parece correta a interpretação que Bento oferece (cf. pp. 79-80) da distinção introduzida por Moore entre, de um lado, a compreensão de uma proposição e a apreensão de sua verdade e, de outro lado, a sua análise (analysis) correta (cf. G. E. Moore, “A Defense of Common Sense”, in Philosophical Papers, Collier Books, New York, 1966, pp. 32-59). Sobre a noção de análise em Moore, leia-se o cap. 5 (“Sentido Común, Datos Sensoriales y Propiedades no Naturales”) do livro de E. A. Rabossi intitulado Análisis Filosófico, Lenguaje y Metajzsica, Monte Ávila Editores, Caracas, Venezuela.
19. Cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 78.
20. Cf. ibid., pp. 62 e 79.
21. John Wisdom relata que, ao ouvir a prova de um mundo exterior proposta por Moore, disse Wittgenstein: “Those philosophers who have denied the existence of Matter have not wished to deny that under my trousers I wear pants”, cf. John Wisdom, “Moore’s Technique”, in The Philosophy of G.E. Moore, ed. by Paul Arthur Schilpp, The Library of Living Philosophers, 1942, Northwestern University, Evanston and Chicago, p. 431. Bento Prado toma essa passagem para epígrafe da parte II de “Por que Rir da Filosofia?”, cf. p, 69.
22. Cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 79; “De que nos serviu o trabalhoso inventário dos truísmos de que partiu Moore, se no final e ao cabo nos reencontramos no ponto de partida de qualquer filosofia?”.
23. Cf. ibid., p. 62.
24. Tomo a expressão a Danto, cf. Arthur C. Danto, Analytical Philosophy of Knowledge, Cambridge University Press, Cambridge, 1968, pp. IX-X.
25. Veja-se o comentário de Moore sobre a expressão external things (coisas exteriores) e outras equivalentes, cujo uso o autor lembra ocorrer já em Descartes, cf. G.E. Moore, “Proof of an External World”, in Philosophical Papers, p. 128. É interessante notar que uma expressão equivalente se utilizava na linguagem do ceticismo grego. Sexto Empírico, com efeito, nos diz que o cético se limita a dizer o que lhe aparece (tò heautõ phainómenon), nada afirmando sobre as realidades ou substâncias exteriores (tà éxothen hypokeírnena), ef. Hip. Pirr. I, 15.
26. Bento Prado formula com justeza a posição das “filosofias do senso comum” quanto ao desvio que leva a filosofia ao delírio idealista: “O desvio começa quando se considera o mundo como problemático ou insuficientemente fundado, como uma aparência a ser salva por uma instância supostamente superior”, cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 64.
27. Cf. “A Defence of Common Sense”, p. 41. Esse paradoxo foi chamado por Lazerowitz “o paradoxo de Moore”, cf. Morris Lazerowitz, “Moore’s Paradox”, in The Philosophy of G.E. Moore, ed. Schilpp, pp. 369-393.
28. É Górgias quem o diz, cf. Górgias, fragm. 11 (conforme a numeração dos fragmentos dos autores pré-socráticos em Die Fragrnente der Vorsokratiker, Diels-Kranz, 3 vol., Weïdmannsche Verlagsbuchhandlung, 1956).
29. Cf. Aristóteles, Refutações Sofísticas 165a. Trata-se de uma bela passagem do Órganon, na qual o filósofo explica por que os homens se deixam enganar pelas palavras.
30. Cf. “Prefácio” p. 40.
31. Cf. ibid., p. 41.
32. Cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 78: “A consulta que fazemos ao senso comum nada nos informa, portanto, a respeito do Mundo, deixa ‘as coisas como estão’ e, a nós, no grau zero da filosofia”.
33. Palavras de Wittgenstein, citadas por Moore, cf. G.E. Moore, “Wittgenstein’s Lectures in 1930-33”, in Philosophical Papers, p. 317.
34. Comentando o “Prefácio a uma Filosofia” (particularmente pp. 41-42) Bento Prado entendeu, no entanto, que a filosofia que eu propunha se restringia à explicitação da visão comum, cf. “Por que Rir da Filosofia p. fil: “Necessariamente diferente, a perspectiva do filósofo não é inteiramente outra, já que se limita a explicitar o que estava presente na perspectiva anterior” (isto é, na da “atitude espontânea”).
35. Ao estudar a categoria da relação, Aristóteles nos diz que os relativos se caracterizam pela reciprocidade de sua relação a seus correlativos (isto é, estes também lhes são relativos) e pela sua simultaneidade com eles: o ser dos relativos não se dissocia da relação, cf. Categorias 7,6 b28 segs.; 7 b15 segs. De um modo geral, o ser do relativo consiste no “estar numa certa relação com alguma coisa”, cf. Tópicos VI, 4, 142 a29. Mas Aristóteles entende que alguns relativos, como a ciência, o pensamento, a medida, são exceções a essa regra geral: embora sejam relativos, respectivamente, ao conhecível, ao pensável, ao mensurável, essas relações não possuem aquelas propriedades da reciprocidade e da simultaneidade. Assim, por exemplo, o conhecível se dirá relativo à ciência unicamente para significar-se que a ciência lhe é relativa, numa relação que define e constitui a ciência, não o próprio conhecível, que é anterior à ciência e independente dela, cf. Metafísica V, 15, 1021 a29-b2; Categorias 7,7 b22-35. O que pretendo exprimir no texto, ao dizer que a filosofia é relativa ao Mundo, mas que o Mundo não lhe é relativo, é o fato de que a relação da filosofia ao Mundo é exatamente análoga à que Aristóteles reconhece existir entre a ciência e o conhecível: anterior à filosofia e independente dela, o Mundo não se constitui pela relação que a filosofia com ele mantém; e, se dissermos que o Objeto da Filosofia (isto é, o Mundo) é relativo à filosofia, será apenas para significar que a filosofia é relativa ao Objeto, numa relação que a constitui, mas que não constitui o Objeto.
36. Cf. “Prefácio”, p. 38.
37. Bento Prado atribui-me essa esperança, cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 78.
38. Cf. “O Conflito das Filosofias”, p. 10.
39. Segundo Bento Prado, o senso comum, tal como Moore o entende, não “força” uma filosofia, cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 72.
40. Invocando a “descontinuidade” entre o conhecimento científico e a consciência comum, Bento Prado entende que não se pode estabelecer uma teoria positiva do senso comum como forma de conhecimento: defini-lo como conhecimento nos conduziria a ter de interpretar a experiência comum como alienação, cf. ibid., p. 77.
41. Cf ibid., p. 72.
42. Bento Prado quer acuar-me entre o idealismo e o biologismo, cf. “Por que Rir da Filosofia?” p. 76.
43. Cf. W.V. Quine, “Epistemology Naturalized”, in Ontological Relativity and Other Essays, Columbia University Press, N.Y. and London, 1969, pp. 69-90. Nesse artigo, Quine propõe sua concepção da epistemologia, que a desloca de seu velho estatuto de filosofia primeira (cf. p. 87) e a integra na ciência natural, como um capítulo da psicologia (cf. pp. 82-83).
44. Como é o caso com Danto, cf. Arthur C. Danto, Analytical Philosophy of Knowledge, Cambridge University Press, Cambridge, 1968, p. XI.
45. Como se sabe, a expressão “metafísica descritiva” foi introduzida por Strawson, cf. P.F. Strawson, Individuals, An Essay in Descriptive Metaphysics, Methuen, London, 1964, p. 9.
46. Bento Prado lembra o dito de Wittgenstein segundo o qual a filosofia do senso comum só emerge depois da queda, “quando a inocência adâmica do senso comum se tornou inacessível”, e acrescenta: “A filosofia do senso comum é a tentativa desesperada de um impossível retorno”, cf. “Por que Rir da Filosofia?”, p. 73.
47. Cf. Hij. Pirr. I, 28-29.
48. A noção de tempo lógico foi introduzida por V. Goldschmidt no contexto de um método “estruturalista” de interpretação dos sistemas filosóficos, cf. Victor Goldschmidt, “Temps Historique et Temps Logique dans Interpretation des Systèmes Philosophiques”, in Histoire de la Philosophie: Méthodologie, Antiquité et Moyen Âge, Actes du Xlèrne Congrès International de Philosophie, vol. XII, pp. 7-14. Uma tradução desse texto foi publicada em apêndice à edição brasileira de A Religião de Platão, do mesmo autor, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1963.
49. Quando escrevi o “Prefácio a uma Filosofia”, eu não tinha ainda claro para mim esse ponto e afirmei, incorretamente, que a nova filosofia se integraria no conflito das filosofias, cf. “Prefácio”, p.42.


Autor: Oswaldo Porchat
Fonte: Pausa para a Filosofia